sexta-feira, setembro 30, 2005

Retratos de sucesso

No centro da cidade, as multidões apertavam-se. Ao que parece, os mais velhos vestiram-se de negro para pintarem os mais novos. Uma espécie de luto pela inteligência. Apinhavam e entupiam as ruas da cidade. A razão parecia-lhes mais que apropriada.
Um dos mais destacados líderes meneava a cabeça de olhos fechados, enquanto coçava a barriga por baixo de uma t-shirt que clamava bem à vista: I'll die for you, e outros epitáfios «rock-da-candonga» não muito longe do género.
Um outro montava-se em cima de um futuro aprendiz de idiota e exortava ao esforço cavalar do rapaz.
Três raparigas seguravam, numa tentativa de erotismo apenas comparada ao Mercado do Bolhão, os traseiros umas das outras.
À parte, um rapaz compunha, com ajuda de dois tenores, uma canção académica, prometendo novas aventuras.
Num pequeno espaço de tempo, ergueram todos a imagem de marca. A garrafinha de cerveja parecia querer subir aos céus num brinde vadio. Ao mesmo tempo, o rapaz de gatas olhava para o ar em súplica, enquanto alguém lhe atirava cerveja para a cara. As três raparigas entravam em êxtase e já não sabiam o que segurar, enquanto trovejavam cânticos. Já de lado, o compositor finalizava a música, dirigindo-se a duas mães que passavam: «Engoles?». Portanto, enquanto atravessava o centro da cidade, tive a breve impressão de que o ano lectivo já começou.

[João Silva]

Correcção

Num post sobre White Blood Cells, álbum de The White Stripes, atribuía uma melodia mais calma a Fell in Love with a Girl. Foi erro, queria referir-me a We're Going to be Friends. Já foi corrigido.

[João Silva]

A ler

O texto «Tele Pop Music», de Nuno Galopim, no DNa. Aqui fica um curto excerto:

«Nasce assim o fenómeno D'ZRT, sempre com o sub-título da novela respectiva por perto, não vá o nome enganar os alvozinhos. Quatro rapazes vestidos à moda Feira do Relógio, ténis e T-Shirts com tantas cores como o catálogo das tintas não sei quantas. Cabelos supostamente cool. Ou com boné fixe. Olhares de aprendiz de matador. E a música? Bom, essencialmente fazem versões em português de canções compradas lá fora (um pouco como Marco Paulo fazia nos seus dias de glória nos anos 80). O som? Pois, é típico melodismo básico boy band mas com guitarradas rock nhó nhó, o temperozinho hip hop barato que não podia faltar e com vozinhas bem juvenis para não afugentar o target.»

[Paulo Ferreira]

Prémio Fernando Namora

Atribuído a Anjo da Tempestade, obra de Nuno Júdice.



[Paulo Ferreira]

quinta-feira, setembro 29, 2005

A camélia e o filósofo

Pelos vistos, a comitiva de Carmona Rodrigues anda muito preocupada com a reaparição de Bárbara Guimarães em público, ao lado do seu nobre marido, Manuel Maria Carrilho. Eu julgo que as hostes lisboetas do PSD fazem muito bem em ficar preocupadas. Afinal, se eu votasse em Lisboa ficaria de beicinho caído pela antiga namoradinha de Portugal, antes de riscar uma cruz ao lado da fotografia de qualquer candidato. É certo que Bárbara Guimarães não é candidata ao que quer que seja, no entanto, a sua bela imagem é susceptível de amansar todo e qualquer coração desprevenido pelas angústias urbanas. Além disso, Bárbara Guimarães parece ter uma coisa que o seu marido não tem: vergonha na cara. Pelo menos, ainda não a ouvi dizer que queria fazer um jardim em cada bairro de Lisboa. Mas, por outro lado, Bárbara é casada com Carrilho, o que me deixa intrigado sobre a maneira como certos pensamentos se articulam com o vento.

[Paulo Ferreira]

Meg White

Provavelmente, alguns leitores mais habituados à contemplação da beleza celeste ficarão chocados com o que aqui vou escrever, mas, no seguimento do que o João disse acerca dos White Stripes, aproveito para afirmar que aprecio deveras o trabalho de Meg White.



[Paulo Ferreira]

Aprendendo com os mestres

Mergulho. Mergulho mais fundo ainda e não encontro nada. E no entanto tu existes. És muda e existes. Quando me imagino livre de ti, é que tu tens mais força. Procuro explicar-te por palavras, por convenções, por regras aprendidas, por habilidades... És muito maior do que eu.

Raul Brandão, Húmus

[Paulo Ferreira]

Blog na costa

Ao que parece, o desaparecidíssimo Tiago Baltazar está em Estado de Sítio.

[Paulo Ferreira]

O velho e a «fnac»

Há dias atrás, um vetusto senhor dizia-me que se recusava a entrar em locais como a «fnac». Eu, como viciado que sou em gastar dinheiro naquele bendito local de vendas, fiquei escandalizado. Mas o velho senhor, não se assustando com a minha arrogância imperialista, desafiava-me com argumentos muito lúcidos contra a cadeia comercial francesa. A certa altura, rendi-me às evidências. A «fnac» não é, com efeito, o paraíso que eu imaginava que fosse. Seguindo, então, as palavras do senhor, a «fnac» está organizada como um supermercado. Depois, a «fnac» não é somente uma livraria (o que não me incomoda particularmente, mas percebo que incomode outras almas menos humildes). E, para não me prolongar muito com palavras que não são bem minhas, a «fnac» é muito, mas muito mal frequentada. De qualquer forma, sendo um supermercado ou não, foi na «fnac» que comprei a maior parte dos meus livros, Paul Johnson e Leo Strauss incluídos.

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, setembro 28, 2005

Caos em Gaza

Sobre a situação em Gaza e a comparação entre Palestina, Iraque e Afeganistão, a ler aqui:

«But here again is the key difference so far between Iraq and Palestine. Abbas’ cabinet is not galvanizing popular support for fighting the terrorists, whose thuggery against Palestinians is tolerated as unfortunate blowback from their anti-Israeli jihad. Yet for Palestine to become a sovereign state that conducts normal relations with its friends and negotiates differences with the Israelis, the elected government, like Iraq’s, must assume a monopoly on the use of force and put down warlords and gangs.

(...)

Abbas must unambiguously accept the existence of the Jewish state and thus give up the boilerplate slogans about sending 4 million Arabs into pre-1967 Israel under the “right of return.” Instead of Palestinian officials praising terrorists in Arabic (“heroes fighting for freedom”) while condemning them in English to European diplomats, Abbas and his cabinet very soon must decree that Hamas and other killers lay down their weapons or face the fate of all outlaws.

(...)

Islamicists who shoot, not Westerners who support those who vote, alone can destroy the future of Afghanistan, Iraq — and Palestine.

President Talabani and his Iraqi parliament, like President Hamid Karzai in Afghanistan, are making progress as they fight the radical Islamic enemies of democracy and the rule of law. Mahmoud Abbas, in contrast, has not even begun.
»

Victor Davis Hanson, 28/09/2005

[João Silva]

White Blood Cells


Depois do lançamento de um álbum bastante peculiar, pelo menos diferente na dinâmica geral da música, como foi Get Behind Me Satan (2005), os White Stripes voltaram, no entanto, aos píncaros da crítica internacional do cenário musical, arrecadando alguns prémios e sendo nomeado para outros mais mediáticos (como sendo o da MTV). No entanto, e embora tenham uma carreira quase imaculada (mesmo as piores composições exercem uma estranha atracção sobre quem os ouve), Jack e Meg White têm, em White Blood Cells (2001), aquele que é, certamente, o seu álbum mais equilibrado. Nenhuma das músicas parece emergir com mais pretensões que o restante alinhamento - ao contrário do que surge, como exemplo flagrante, em Elephant (2003), com um Seven Nation Army irritantemente catchy (logo viciosamente comercial).

Mas White Blood Cells tem muitos trunfos. Abre com uma composição inconfundível (Dead Leaves and the Dirty Grounds) para quem tem prestado alguma atenção à banda dos senhores «White». O tom quase cerimoniosamente meloso de We're Going to be Friends contrasta, claro, com a maioria das suas músicas. Já uma simplicidade nas composições, anunciando a maturidade (mas também a ambiência, o que é menos bom) rock do último álbum, está em The Union Forever e Offend in Every Way, as menos furiosas das músicas. Ainda assim, numa banda onde o feedback e uma certa força a mais das e nas guitarras é sinal do regresso de um saudável rock nostálgico de cerca de 70's, há sempre espaço para mais do mesmo (sem experimentações de estilo e de género), o que, num género de música que não é necessariamente comercial, é admirável.

[João Silva]

terça-feira, setembro 27, 2005

O «!» irreverente

Os pontos de exclamação sempre foram preteridos neste blog. Não só. Também na minha escrita particular e mais (ainda mais) frágil, os pontos de exclamação são seres estranhos. Não é uma questão de querer transmitir um tom de voz monocórdico e sereno, embora faça parte da minha identificação com as obras que leio ou vejo essa rescisão com fúrias que só fazem sentido numa certa adolescência - veja-se, por exemplo, o exagero vocal e vocabular no monólogo esquizofrénico de Monty/Edward Norton em 25th Hour (no entanto, um dos melhores «Spike Lee joints»).

O ponto de exclamação é algo que invoca os «macaquinhos no sótão» de cada um, uma necessidade iminente de gritar em público. Não é, certamente, acidental a presença destes «senhores pontos de exclamação», tentado gritar ao leitor, nos folhetos ditos «informativos» e pedinchantes de partidos a puxar para um extremismo datado, tanto à direita como à esquerda.
Mas voltemos à literatura. Diz Pedro Mexia no DN: «As exclamações só me parecem toleráveis em diálogos e no discurso directo. E mesmo assim, com moderação. É que a exclamação torna desnecessariamente enfáticas frases cuja ênfase se entendia mesmo sem essa pontuação. (...) Digo o mesmo que Ruy Belo dizia contra as maiúsculas não gosto que certas palavras [ou frases] levantem a cabeça. Sei que há génios da exclamação. O torrencial Céline, acima de todos. Mas o que vale para os génios não vale para mais ninguém».

Ora, como sou um aficcionado das aspas, talvez não tenha legitimidade para me tornar um odioso dos pontos de exclamação, que evito tanto quanto discotecas, mas, por aqui, é provável que as vezes que encontram esses pontos mal-educados se contem pelos dedos de uma mão. Até mesmo por ser um sinal furioso e irreverente dos tempos, o ponto de exclamação não é uma das paixões de quem escreve, sobretudo, com uma enorme sensação de perdição pessoal, e consequente indiferença. Caso dos autores deste blog.

[João Silva]

segunda-feira, setembro 26, 2005

O sr. Hollywood

George W. Bush, invicto presidente dos EUA, teve, sem dúvida, uma tarefa difícil em ultrapassar uma sociedade cada vez mais mediatizada. Mas sejamos mais solidários com o Partido Democrata e com os partidos normalmente ditos de «esquerda» (como licença cultural) pois, dos jornais à televisão, sem menosprezar esse anónimo potentado que é o «Sr. Hollywood», são eles que vão buscar mais apoios a essa cosmopolita massa de gente. O «Sr. (ou Sra.) Hollywood» é uma qualquer personalidade ou personagem que se junta às caravanas ou comícios presidenciais desde as primárias dos partidos, assim que fica definido e esclarecido o mais importante candidato: o mais multifacetado e mais vazio é aquele que, sem dúvida, terá o maior número de apoiantes (geralmente, actores e realizadores sem grande sucesso individual na sua profissão).

Para além de mentes tão brilhantes como Springsteen ou Puff Daddy (ou qualquer que seja o actual poético epitáfio do referido vadio), também senhoras mais sui generis dão o seu excelso contributo. Leia-se o que dizem Adrian Wooldridge e John Mickletwaith no seu Right Nation: «One Democratic presidential candidate from the 1980s who happened to have run a decent-sized state once complained to one of us about having to take lectures from Whoopi Goldberg about fiscal policy». Problema que, tendo em conta a qualidade e aceitação gerais da cinematografia portuguesa dentro e fora do nosso país, não ameaça as forças políticas - e os candidatos presidenciais, «já agora» (expressão privilegiada) - portuguesas. Triste seria que José Sócrates, em busca de mais confiança dos consumidores de televisão, se aliasse ao voluntarismo de Herman José ou a um peso pesado como esse esquecido Eládio Clímaco. Como advertência, há que sublinhar um conceito de decadência: Whoopi Goldberg. Pensem nisso...

[João Silva]

Homofobia

À semelhança do homofóbico, também eu tenho fobia dos meus semelhantes.Embora por diferentes razões.

[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 25, 2005

Núcleo duro masculino – definição

Um núcleo duro masculino é, para quem não esteja habituado a conviver com diferentes classes da espécie, um núcleo extremamente vocacionado para falar mal de tudo o que não seja deveras masculino. É do senso comum que, para se ser deveras masculino, basta que um indivíduo exclame um palavrão por frase, que use a camisa abotoada apenas até ao início do peito, que não lave os dentes regularmente, que não use desodorizante e, principalmente, que seja contra tudo o que cheire a mariquice (cheiro a cavalo não se confunde com homossexualidade). Ora, para alguns indivíduos que não sejam homossexuais e que não gostem de andar com cheiro a enxofre debaixo do braço, a confiança com um membro de um núcleo duro masculino é limitadíssima. Se o indivíduo, que não é homossexual mas que não cheira a transpiração, ler poesia, então, a confiança é nula. Poder-se-á imaginar a reacção de um sujeito elitista, cujo principal passatempo seja palitar os dentes, ao ver o título do livro que um hipotético heterossexual asseado esteja a ler: «O úl-ti-mo românti-co...Ai que é desta que o Malaquias morre de desgosto por ter um filho paneleiro! ». Se o membro do núcleo duro masculino for uma pessoa com idade suficiente para fazer chalaça, a reacção será, com certeza, diferente: «Queres ver que ainda te crescem mamas!».

É engraçado pensar-se nos boatos que, por vezes, correm pelas avenidas do «bairro» acerca do filho do vizinho, quando, no fundo, se sabe que o único pecado do filho do vizinho é ler poesia e, talvez, ser um pouco pretensioso (daqueles a puxar para o francês). Claro que nem sempre os boatos que correm são infundados, até porque, como se sabe, os núcleos duros masculinos são núcleos intimamente relacionados com a certeza positivista. Aliás, nesses núcleos, é regra aceite o facto de um homem só falar quando sabe aquilo que diz. A frase «Deus que suba um pinheiro se o brasileiro não for o melhor jogador do Sporting!» é frequente na afirmação de uma certeza absoluta. Diga-se, porém, que, se esse tipo de frases inexpugnáveis vier da boca de um heterossexual asseado, as coisas mudam de figura. Repare-se no seguinte exemplo: se dois membros do núcleo duro estiverem a conversar um com o outro, as possibilidades de discórdia são limitadas, já que os pensamentos são poucos e a virilidade flui no ar. Todavia, se a conversa se der entre um «barba rija» e um heterossexual normal, as possibilidades de o primeiro dizer «o brasileiro é bom mas o preto é melhor!» são elevadas. Isto porque um homem à séria desconfia de tudo aquilo que saia da boca de um homem que cheire a perfume, que leia livros e que pronuncie o lexema «heterossexual» (um «barba rija» do núcleo duro nunca diria palavras como heterossexual, visto que, só o pronunciar da palavra, já levanta dúvidas).

[Paulo Ferreira]

O susto do primeiro livro

Maria nunca lia um livro por completo. Porém, um dia, quando finalmente conheceu o final de uma história, a pobre rapariga assustou-se.

[Paulo Ferreira]

sábado, setembro 24, 2005

Carta de ruptura por excesso de desejo

Os dedos que tocam os teus lábios, selando a última
frase que o amor exprime, tornaram-se frios com a queda
da noite e um vago início de inverno. Tu ouviste as
palavras do inventor de versos, descobrindo a linguagem
a um olhar apressado; e não soubeste responder-lhe
nessa fronteira entre mundos idênticos, nem trazias
a resposta a uma inquietação antiga de que só os
deuses conheceram o nome. O retrato fixou esse gesto
sem resposta na imobilidade do tempo, e trouxe-o
até mim para que, devagar, te responda numa hesitação
de estrofe: «Amo-te! A quem o horizonte ocultou algum
dos enigmas de que as aves feridas indicam a solução;
e um músico louco dedicou as últimas páginas brancas.»

Então, esse inverno desfez-se nos bolsos em que procurei
a eternidade; os limites romperam-se naquele sonho de que
só recuperei a tua imagem. Nada do que iria acontecer
ficou previsto no silêncio que me deste – para que o
transformasse num ritmo poético – e que guardei numa
gaveta do acaso. Nem o astro ocasional da madrugada
permitiu que se lesse o texto de uma despedida que a
memória tornou breve como a estadia das folhas no fim
do outono. A melancolia corrompe essa vida efémera; e
a chuva limpa os campos que a névoa amortalhou. Digo-te
que nada disto é tão real como o teu rosto esquecido.


Nuno Júdice, As Regras da Perspectiva

[Paulo Ferreira]

Insanidades

Uma incentivo para mudar de barco com convicção: Joana Amaral Dias juntou-se à campanha presidencial de Mário Soares.

[João Silva]

O estado das coisas: 68



[João Silva]

sexta-feira, setembro 23, 2005

Comédia em tempos sombrios II

Nos inícios do século XIX, uma amputação de um braço ou de uma perna poderiam levar à morte, já que o doente amputado poderia entrar em choque. Tendo consciência disso e do facto de, naquele tempo, ainda não existirem medicamentos anestésicos para além do brandy e do rum, os médicos tentavam amputar os membros dos seus pacientes o mais rapidamente possível. Reza a história que, no meio de tanta confusão, um tal doutor Liston, tentando quebrar o seu recorde pessoal de rapidez operatória, conseguiu amputar uma perna em menos de dois minutos. O problema é que, com a perna, vieram um testículo afoito do doente e dois dedos do assistente do médico. Três coelhos de uma só cajadada.

[Paulo Ferreira]

Sinais de Fogo

Jorge de Sena é dono de uma capacidade de escrita fora do normal. Essa característica é algo que está vulneravelmente exposto no seu Sinais de Fogo, romance póstumo publicado um ano após a sua morte. Obra de uma vida, literalmente.
O «Jorge» de Sinais de Fogo poderia até conter alguns traços autobiográficos, tal é a força interior que o enche de dinâmica nas relações com outras personagens, mas esse fogo narrativo que incendeia tudo à sua passagem (ou é incendiado pela própria passagem, que me parece mais adequado) parte da personalidade específica do autor, não de uma caricatura exagerada do homem central do romance, e muito menos de uma «necessidade» premente que contar histórias de vida.

Não, Sinais de Fogo evoca, sobretudo, uma realidade: Jorge de Sena é um poeta dentro do romancista, e a sua obra enuncia-o, sobretudo, nos momentos em que o homem se abandona à terra, ao que o rodeia: «Quando fiquei junto delas, que menos pareciam cravar-se na areia que nascerem da praia (o que era como que indicado pela delicadeza de sutura entre a areia molhada e elas, marcada por um fio de água rente), os meus olhos não queriam reconhecer, no que viam, dois barcos de ferro, encalhados e desmantelados, reclinados um contra o outro». Mas Sena poeta está ainda mais presente nas deambulações mentais que trazem um vago chamamento de um outro mundo, onírico e surreal, cuja força não é comum nos romances vulgares: «Umas palavras indistintas perpassava, lentas, combinando-se e descombinando-se na minha cabeça. Recostando-me na cama, senti um sorridente prazer em deixá-las fugir, dissolverem-se hesitantemente, com recorrências murmuradas como as crespas vibrações e contra-vibrações à superfície de uma água escura e quieta que se imobiliza oleosamente num espelho tranquilo».

Mas não há só lugar para a solidão de «Jorge». O mundo de Sinais de Fogo - uma Figueira da Foz evocando a imundície humana de outros tempos e de outros hábitos morais (ou falta deles) - está cheio de pessoas que povoam o rumo (dir-se-ia errante) da personagem principal. Desde os tios da Figueira aos amigos da adolescência e da juventude, passando pela inevitável ligação a uma mulher especial, Mercedes («A minha posse de Mercedes era a tranquilidade, a saciedade. Um desejo que desejava mais que o desejo») e a outras hostis (Almeida) ou psicologicamente complexas e imprevisíveis (Rodrigues). Havendo ainda espaço para outras mais ridicularizadas (Rufininho, entregue a uma pederastia voluntária) ou caricaturadas, como a sua própria mãe, dona-de-casa fechada na «casa» que é o regime póstumo («Olha, sabes que mais? Quem manda manda. O governo lá tem as suas razões. Oh, que horror... Tinham a bordo exemplares, diz aqui, do Marinheiro Vermelho. Que horror»).

Por outro lado, ainda há espaço para um pequeno inventariado orgiástico de costumes e casas de má fama de outros tempos, para além do esqueleto verbal que sustenta a «vida»: «Quase me deu vontade de rir aquela consciência profissional, mas respondi: - Pago-te o tempo perdido, tanto faz. - Tanto faz? Eu não sou um táxi, não vivo de tempo, eu vivo disto... - e arreganhava o sexo com as mãos». Enfim, numa naturalidade comovente, algures no romance um homem (um estranho) resume parte da aceitação do ser humano às ofertas da terra, uma cumplicidade masculina a fazer lembrar as amizades rápidas da infância: «O condutor pendurou-se amigavelmente da plataforma: - Vão mesmo às putas? E eu que ainda tenho mais três horas de serviço...».
Um excelente romance. Uma obra clássica.

[João Silva]

Contemplação II

Quando o vento dava leves empurrões na porta, os anos de solidão que separavam o nosso silêncio cego e cúmplice daquele baque sem dono carregavam o quarto de uma atmoesfera de castigo iminente.
Empurrando-me de súbito, tapavas com o lençol um corpo que dissolvia sonhos ao fim da tarde. Poder-se-ia dizer que, ao puxares esse lençol, tomavas sobre ti toda a culpa do mundo.

[João Silva]

Contemplação I


Bridget Fonda

[João Silva]

quinta-feira, setembro 22, 2005

Enganos

Ao que parece, ontem, ao afirmar que Eduardo Prado Coelho escreve as suas colunas como candidato nas listas do PS à Câmara Municipal de Lisboa, enganei-me . Com efeito, hoje, ao desfolhar o meu exemplar do Público, reparei que, para grande desilusão minha, o excelso senhor assinava apenas como professor universitário. Desconheço as razões que levam um intelectual da dimensão de Prado Coelho a assinar enquanto candidato nas listas do PS nos dias em que escreve sobre política, ou mais especialmente, nos dias em que se entretém a falar sobre o aspecto físico de Carmona Rodrigues ou sobre a sua falta de cultura. Desconheço, até, se o próprio Prado Coelho desconhece o facto de um dia ser apenas professor universitário e no outro ser também candidato do PS. No entanto, parece-me que o mestre da palavra portuguesa, com as suas técnicas sempre estalinistas, anda a aproveitar-se do seu pequeno espaço de opinião para fazer propaganda a si próprio e ao seu grande aliado, Manuel Maria Carrilho, homem de letras e de grandes virtudes. O que não é de espantar, pelo menos, se seguirmos o fio do horizonte.

[Paulo Ferreira]

Impaciência

Hoje, acordei disposto a dissertar sobre algumas das hipotéticas qualidades de Eduardo Prado Coelho, enquanto colunista. Porém, mal me apercebi da tragédia que se abateria sobre a minha pessoa, caso levasse avante a ideia de derramar algumas palavras sobre um senhor que muito pouco prezo, tentei procurar pensar noutro tipo de coisas. Felizmente, ao abrir o jornal, encontrei uma fotografia da belíssima Angelina Jolie. Fiquei logo reconfortado por saber que, apesar de tanta loucura, ainda me resta um pouco de lucidez (ou de testosterona).



[Paulo Ferreira]

A ler

«Mais ridículo é impossível», texto de Paulo Alves, no blog dos 300.

[Paulo Ferreira]

Fórmula, Repetição

Diz-me, perdido o teu corpo na tarde de chuva,
se é justa a solidão de quem te ama, sem o
dizer, e nesta incerteza te fala. Ou , ainda,
lembra-me se algum dos teus gestos e palavras,
agora que os evoco, um a um, na lenta enumeração
da memória, se dirigiam a esse amor que oculto,
sem que o saibas, para que tivesse de o revelar.
Ó imagem antiga de uma vida que não tive,
ensina-me essas frases subtis que dão fogo
às tardes, mesmo de chuva e de inverno, e
despertam os corpo para a obscura realidade;
e dissipa o fundo encoberto do olhar para
que um céu pálido e luminoso se descubra,
trazendo o canto de uma ave rigorosa
- essa cujo voo sábio dobrou o horizonte
do coração; e, num enxame de áridas emoções,
reconheceu o desejo dos amantes e o brando
furor de um encontro de lábios. Então,
podes esquecer-me, dormir um sono sem asas,
abrigar os seios de uma ânsia de raízes.
Porém - por que não dizes nada? e me deixas
sem nada saber de ti, ausente, na sombra do poente.

Nuno Júdice, Enumeração de Sombras

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, setembro 21, 2005

Decência

Pela primeira vez, confesso uma daquelas coisas que considero inconfessáveis: leio regularmente as crónicas propagandísticas de Eduardo Prado Coelho, no Público. Faço esta confissão com meio litro de saliva preso na garganta. Mas tinha mesmo de abrir o coração com o leitor, já que hoje descobri que o senhor doutor Prado Coelho, sapiente conhecedor dos mistérios do coração, apresenta-se nas suas crónicas enquanto candidato na lista do PS à Câmara Municipal de Lisboa. Isto durante cinco dias por semana.

[Paulo Ferreira]

Comédia em tempos sombrios

No tenebroso ano de 1793, um homem que dava pelo nome de Sir William Hamilton, dizia que Nelson, o futuro herói de Trafalgar, seria o maior homem que a Inglaterra alguma vez produzira. Cinco anos mais tarde, Nelson iniciaria uma relação amorosa com uma tal Emma Hamilton, esposa de Sir William Hamilton.

[Paulo Ferreira]

Battle Ahoy!

Não me importava de passar, um destes dias, pelo National Maritime Museum e assistir a uma exposição que tem por nome Nelson and Napoléon. Seria uma boa forma de gastar umas libras.

[Paulo Ferreira]

Space cowboys

Refere o caro amigo Bruno: «Ouvi, na SIC Notícias, pela voz da jornalista Susana André, que os EUA planeavam, para daqui a uns anos, uma nova ida humana à Lua, numa operação visando a preparação de uma ida a Marte. Disse a senhora jornalista que tal façanha dependeria de um vasta parte do orçamento federal, "numa altura em que todos os recursos são necessários" (estou a citar) na ajuda às vítimas do Katrina.» É um facto que, perante a desgraça televisiva, sentimos obrigação de «sermos todos americanos». E, sendo genuinamente americano, o natural é aprender de imediato a criticar o governo central. Mas a equação é mais complexa. Os jornalistas já não fazem só apontamentos de humor acerca do Presidente (seja Bush, seja Clinton) nem simples críticas às opções da Administração. E, na verdade, nem só os jornalistas enveredam por estas cruzadas verbais contra os EUA. O português «vulgar», sem acompanhamento televisivo, é muito mais expansivo: «aquilo é que vai para ali uma caldeirada, com as tropas do Bush (sic) a guardar as casas dos ricos». E, voltando ao post do Bruno, já houve quem se lembrasse, na altura do regresso de um satélite, do «acto desumano e troçista» que é ter um programa espacial, e uma consequente agenda, em horas negras, não só dos EUA, mas do Mundo. Escusado será alertar para o facto da NASA ser uma pioneira moderna da descoberta de novos recursos e «territórios», em nome de uma maioria de pessoas, e de haver divisões claras do orçamento. Nem os jornalistas nem os populares se importam com ninharias. Ou, como me respondeu um dia um conhecido: «esse Bush sabe muito. O Mundo é pobre, mas o Texas está sempre rico. E a NASA, sabe onde é que é? Sabe? Em Houston, no Texas. E agora? Que é que me diz a isto, amigo?».

[João Silva]

No comboio correio entre Beja e Lisboa (fim dos anos 50)

Era o tempo em que o comboio parava em todas
as estações: o comboio correio, a caminho de lisboa,
levando famílias da província para passar o ano
com os parentes de lisboa. Nessas paragens,
quando se fazia o silêncio
depois do guinchar dos travões, o chefe da estação
anunciava o nome da terra: terras que só existiam
de nome, para quem viajava no comboio, à noite,
a caminho de lisboa, e se reduziam a apeadeiros
de luz apagada no meio do campo. Por vezes, entravam passageiros
com grandes malas e cestos de fruta. Era a única animação
da carruagem nocturna: vê-los encaixarem as malas
e os cestos, antes de se sentarem em silêncio
nos bancos de madeira desses comboios do inverno. Mas
na estação de beja era diferente: era onde as vendedeiras
assaltavam as carruagens, vendendo água em bilhas
de barro. Eu pedia água, não por causa da água mas para ficar
com uma bilha de barro, dessas que partem o gargalo à primeira,
mas que deixam na boca um travo puro a terra. Às vezes,
quem vendia a água eram crianças de samarra apertada
até ao pescoço. Não diziam nada; e
passavam devagar, por entre os bancos, olhando à direita
e à esquerda, como se quisessem levar consigo
o destino de cada um de nós. Pergunto-me, hoje, se
o meu não terá ido, de facto, colado a um desses olhares; mas
lembro-me, depois, do casal que se abraçava, à minha frente,
enquanto a noite ia passando a caminho de lisboa. O seu destino,
esse, fui eu que o roubei: o amor nocturno, num banco
de comboio, enquanto o tempo passava entre beja e lisboa; e
atirei-o ao rio, nessa noite fria entre o natal e o fim
do ano. Era o tempo em que o comboio parava
em todas as estações, o tempo em que o único destino do amor
era ser atirado à água, no fim da noite, antes que
a luz da madrugada caísse sobre
o inverno de lisboa.


Nuno Júdice, Teoria Geral do Sentimento

[João Silva]

terça-feira, setembro 20, 2005

Simon Wiesenthal 1908-2005


Morreu, aos 96 anos, Simon Wiesenthal, o judeu natural da Ucrânia que ficou famoso como o menos discreto, e mais importante, dos «caçadores de nazis» que intensificaram a sua «actividade» logo após a rendição dos alemães em 1945. Um dos homens que Wiesenthal nunca desistiu de encontrar foi Adolf Eichmann (finalmente capturado em 11 de Maio de 1960 na Argentina), um dos sobreviventes do regime nazi com mais importância no aparelho administrativo que levou a cabo a missão de deportação e posterior eliminação dos judeus dos territórios ocupados.
Há quem não veja com bons olhos a forma como levou à justiça, sem perdão, os criminosos de guerra nazis, mas Wiesenthal foi e é, sem dúvida, parte importante da história dos judeus e de Israel na segunda metade do séc. XX.

[João Silva]

segunda-feira, setembro 19, 2005

Sobre debates televisivos

«Quem, como eu, não acredita muito nessas revelações, pode assistir à maneira fatal como, em épocas de eleições, a mais alta discussão desce vertiginosamente ao nível 1 do recreio de infantário. Este nível imortal consiste em afirmar repetidamente que se é melhor do que o outro. O outro diz "Não és nada!" Responde-se "Ai isso é que sou!" E por aí a fora.
É um prazer verificar que toda a apregoada "complexidade" se reduz, em televisão, a isto: "Mentira!", grita um. "Verdade!", reafirma o outro.
"Não sabes nada disto!", insiste o primeiro. "Sei sim senhor! Tu é que não sabes!", responde o segundo.
»

Miguel Esteves Cardoso, DN 18/09/2005

[João Silva]

Arte política

Numa feira do costume, Manuel Maria Carrilho faz campanha ao lado da esposa. Quando confrontado com as câmaras, o sapiente filósofo mostra-se extremamente agradado com a reacção das hostes populares à sua visita. Ao mesmo tempo, ouve-se, não se sabe bem de onde, um cidadão pouco habituado ao contacto com classes, digamos, um pouco mais elitistas soltar um palavrão, que, pela sua beleza e simplicidade, tem de ser referido. «Cigano!», foi o que disse o popular.

[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 18, 2005

Rodapé

Ao que parece, Manuel Maria Carrilho sentiu-se ofendido com o técnico, capanga, capataz, perdão, Carmona Rodrigues.

[Paulo Ferreira]

Memória

Persigo-te nos confins da memória mas não te encontro. Se isto não fosse o mesmo sonho de sempre, dir-te-ia que as tuas fugas já se começam a tornar um tanto ou quanto repetitivas. Mas, como te digo, isto de pensar na tua fuga é um sonho. A realidade, essa, é diferente. É diferente na medida em que nunca nos conhecemos.

[Paulo Ferreira]

Há nomes que ficam

Há nomes que ficam, sem préstimo, nas agendas,
transitam de ano para ano por inerência
ou desleixo, por vezes o nome próprio
é uma referência obscura, e nunca houve apelido.
Os números, em poucos anos,
passam de mnemónicas a criptogramas,
indicam sem dúvida que nos cruzámos
com gente que se cruza connosco,
que trocámos telefones como
se trocássemos alguma coisa,
mas tudo muda, os conhecidos
tornam-se amigos e depois desconhecidos.
Estes nomes, posso riscá-los
como se fosse velho e eles mortos,
mas os números, como uma praga,
acumulam-se, escritos
com tintas diferentes
e por vezes nas letras erradas.
Não posso desfazer-me das agendas
nem começar uma todos os anos,
mas já não sou o mesmo:
os números observaram as minhas idades
e talvez pudesse agora marcar este
que não me diz nada
e contar tudo
a alguém que não se lembra de mim.


Pedro Mexia, Duplo Império.


[Paulo Ferreira]

Após longa espera...

Já se pode ler no blog dos 300. Um dos indispensáveis.

[Paulo Ferreira]

Prazer submisso

Acabo de ler Servidão Humana (Of Human Bondage no original) de Somerset Maugham com todo o prazer imaginável. Admito que nunca tinha lido nada de Maugham antes de pegar nesta obra publicada em 1915. Mesmo assim, sendo um leigo em matérias de Maugham, não posso deixar de fazer algumas considerações sobre um romance que muito me fascinou.

A personagem principal de Servidão Humana é Philip Carey, estudante de medicina que sonha com deambulações múltiplas por diferentes espaços culturais europeus. No entanto, Philip, à semelhança de várias personagens imortalizadas por Dostoievski, é um rapaz apaixonado por uma mulher deveras libertina, o que faz com que muitos dos planos que o jovem britânico vai idealizando para a sua vida saiam frustrados. Aliás, é devido a essas imprecações amorosas que Philip enfrenta grandes dificuldades para concluir o seu curso (homens fracos, apaixonados por libertinas, têm, normalmente, grandes dificuldades em manter dinheiro na carteira). Somerset Maugham, à semelhança da personagem por si criada, também estudou medicina e, ao que parece, também sonhou com deambulações um tanto ou quanto diletantes, o que leva a crer que Philip seja uma espécie de alter-ego do seu criador.

Mildred é o nome da jovem libertina que, com os seus maduros encantos, seduz todas as atenções de Philip. Ao longo de todo o romance, destacam-se as muitas cenas em que Philip, devido a esta ou àquela situação, se vê rebaixado à sua condição de coxo ( Philip tem um pé boto). Geralmente, essas cenas estão todas ligadas a Mildred, mulher fútil e caprichosa, que não hesita em humilhar a personagem principal da obra. Para quem leu obras como Noites Brancas ou O Eterno Marido de Dostoievski, as personagens de Mildred e de Philip são bastante conhecidas: Philip é o eterno marido, o eterno apaixonado, que se deixa trair e humilhar devido à doença amorosa de que padece; Mildred, por seu lado, representa a mulher infiel, que não olha a meios para satisfazer os seus caprichos. Todavia, e ao contrário daquilo que acontece nas referidas obras de Dostoievski, Philip, apesar de viver sempre sob a sombra do vexame, acaba por ganhar consciência do seu estado febril e, por conseguinte, acaba, no final, por dar-se conta da vulgaridade de Mildred. Ou seja, quando seria de prever que o herói de Servidão Humana seguisse uma trajectória deveras conhecida, na qual a personagem principal nasce e morre feliz dentro da desgraça, Philip tem uma mudança radical no que diz respeito aos seus sentimentos por Mildred. E é por isso que não se pode afirmar que o «herói» de Maugham seja uma espécie de eterno marido, até porque, no final, Philip encontra a felicidade que não encontrara ao lado da fútil mulher.

Apesar de ser possível de se encontrar vários outros pontos de discussão numa obra tão vasta e tão rica como Servidão Humana, julgo que é esta relação entre Philip e Mildred que mais consegue fascinar o leitor. É o síndroma de corno presumível que está em questão e, a isso, não há curiosidade que resista.

[Paulo Ferreira]

sábado, setembro 17, 2005

Once upon a time



There was once, so Schopenhauer tells us, a colony of porcupines. They were wont to huddle together on a cold winter’s day and, thus wrapped in communal warmth, escape being frozen. But, plagued with the pricks of each other’s quills, they drew apart. And every time the desire for warmth brought them together again, the same calamity overtook them. Thus they remained, distracted between two misfortunes, able neither to tolerate nor to do without one another, until they discovered that when they stood at a certain distance from one another they could both delight in one another’s individuality and enjoy one another’s company. They did not attribute any metaphysical significance to this distance, nor did they imagine it to be an independent source of happiness, like finding a friend. They recognized it to be a relationship in terms not of substantive enjoyments but of contingent considerabilities that they must determine for themselves. Unknown to themselves, they had invented civil association.

- Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays

[Paulo Ferreira]

Hermes, Nove da Noite

Sonhou ser diplomata, foi estafeta, agora
entrega pizzas ao domicílio. Há uns dez
minutos, a mota despistou-se na esquina
da Avenida de Berna com a 5 de Outubro.
Hermes ignorou o semáforo. Testemunhas
dizem que ia depressa demais. Dentro
da ambulância, escuta a sirene e chora,
temendo a ferida mais funda, o silêncio.


José Mário Silva, Nuvens & Labirintos

[Paulo Ferreira]

Europa

«Na Amazon inglesa dei o nome, um apelido, a morada (em português, como é óbvio) e o número do cartão de crédito. Cinco minutos; ponto final. A Europa, de facto, ainda começa nos Pirenéus.»

Vasco Pulido Valente, Público 17/09/2005

[João Silva]

Metro no Verão em hora de ponta

Um vagão da Solução Final.

[João Silva]

Um político ordinário

Alguém que se sente em casa.

[João Silva]

sexta-feira, setembro 16, 2005

Ájax

J. sentia-se em baixo.
Venderam-lhe, então, um conjunto de regras de como sobreviver nas grandes cidades. Mudou de emprego. Mudou de casa. Tornou-se militante de um partido. Encontrou o progresso. Ganhou uma mente aberta. Enquanto cobria a irmã, recitava de cor os sete passos para a felicidade.
Um dia perdeu o conjunto de regras, e tomou uma decisão. Alvejou o próprio estômago e sentou-se à secretária, como se todos os pecados pudessem ser sangrados naquele instante. Perdeu a cor. Perdeu o sangue.
J. já não se sente em baixo.

[João Silva]

Melindre

Certo homem gostava de dizer que a sua vida era melindrosa. Certa mulher detestava que a vida do homem fosse melindrosa. Outra mulher sorria à noitinha, alheia aos encontros que faziam da vida do homem um negócio melindroso. A outra mulher recebia o sexo do homem clandestinamente, enquanto esquecia a palavra «melindroso». O homem, no entanto, na sua cabeça, enquanto se esforçava, ia fazendo novas variações com a sua palavra favorita.

[João Silva]

quinta-feira, setembro 15, 2005

O estado das coisas



[Paulo Ferreira]

Mos maiorum

Quando nos aproximamos de um café e sabemos que, à partida, nos espera um refrigerante pronto a beber, só se pode concluir que há pessoas que ainda se sentem ligadas a velhos costumes. O que, nos tempos que correm, é de louvar.

[Paulo Ferreira]

O serviçal

Um dia virá o cansaço. Deixar-me-ei cair numa cadeira, bem no centro do quarto. E daí, com vista para todas as paredes, não mais precisarei de me levantar.

[João Silva]

Contribuição para as autárquicas



[João Silva]

quarta-feira, setembro 14, 2005

O sedutor desarranjado

No café, ao proporem o costume, D. recusava. Ao perguntarem chá, responderia café. Perguntando café, respondia, furioso, chá. Quando uma mulher se deitava de costas, D. ia ler. Ao avistar um conhecido na paragem do autocarro, D. ia para a estação de comboios. No dia do seu casamento faltou. «Homem imprevisível», elogiavam as mulheres rindo. Preâmbulo da história de um suicídio.

[João Silva]

Estertor

O céu cobrira-se de nuvens. Algo em nós, objecto eufórico, foi surpreendido pela simples mudança de tempo, e deixou o seu posto vital. Damos então por nós a amar como quem sussurra. Ficando em silêncio como quem castiga. Partindo como quem não volta, ainda que alguns passos denunciem uma vontade errante e pernas que não foram concebidas para um adeus.

[João Silva]

Bonfim

Iniciei uma colaboração no Bonfim, que já constava nos links ao lado. O tema: Vitória. Vale a pena visitar.

[João Silva]

Demónio

Aproximas-te de mim com um turbilhão de memórias no bolso, como se fosses uma carteira pronta a distribuir tragédias pelas aldeias (cinco minutos de reflexão). Naufrágio.

[Paulo Ferreira]

Cobrir o espaço

Abres a alma aos amigos para que eles te vejam como tu não os vês, ou seja, de forma perfeita, realizada.

[Paulo Ferreira]

Two Worlds

Invejo a forma como separas as realidades que nos magoam. Um barco, uma casa com vista para as nuvens, uma colina, enfim, um conjunto de peças fragmentárias que, unidas, constituem um mundo inimitável, no qual vivemos, tu e eu, afastados.

[Paulo Ferreira]

Dar os olhos

Há dias em que certas memórias não deixam raciocinar em paz. Por mais actos ou gestos que se façam, as memórias não desaparecem do pensamento, nem estes dois versos de José Tolentino Mendonça (que talvez se confundam com as memórias em causa) : Mas aquilo que nunca esquecemos/deixa de pertencer-nos e nem notamos.

[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 11, 2005

Lounging

Lounge: to sit, stand or lie in a lazy way. A definição da Oxford é, neste caso, falível. O Office Lounging fez ontem um ano. Um ano deixando-nos em boa companhia: na cidade, no clube e na blogosfera. E com a melhor atitude para ir alimentando um blog: office lounging.

[João Silva]

Japão

Do Japão vem-nos um exemplo de «como ser um político» nos tempos que correm. Aliás, do Japão, reservas feitas ao externo impulso político e económico norte-americano no pós-guerra, têm-nos vindo exemplos de todo o género. Hoje, voltou a vencer as eleições o Partido Liberal Democrata e, em sentido prático, o Primeiro-Ministro Junichiro Koizumi. Esta figura esguia, branda, bem intencionada, é mais do que parece. É mais do que um chefe de governo obcecado pelo «desenvolvimento». É, sobretudo, alguém que sabe que o país pode sobreviver sem política, mas nunca sem políticas. Sem reformas. Sem determinação. Com a questão da privatização dos serviços postais, os japoneses, e em especial Koizumi, mostraram que é preciso saber o que se quer e que se quer para levar a cabo as reformas previstas e propostas. Lição inconsciente que, como sempre, passará em branco em países europeus menos civilizados.

[João Silva]

Sobre nós

«É certo que nos últimos tempos a ilusão se organiza em volta de andaimes e não de sistemas políticos. Já não acreditamos - ou não nos dizem para acreditar - que a solução está na alteração do regime. A solução agora está na obra. A ilusão cabe-nos dentro dum estaleiro. Por isso a imagem mais forte, aquilo que vai sobrar deste ano de 2005, é José Sócrates carregando num detonador. Por sinal falso.»

Helena Matos, Público 10/9/2005

[João Silva]

Sobre a América

«Estou a ser parcial? Claro que estou a ser parcial - concedam-me ao menos esse democrático privilégio: aprendi a amar a América através do cinema americano e não creio que se possa esperar de um amante a "neutralidade" dos jornalistas que, todos os dias, nos programam e formatam os modos de ver e pensar.
Assim vai o mundo: os profissionais da "objectividade" escamoteiam diariamente a extrema complexidade de qualquer exercício de percepção e conhecimento, enquanto eu, alienado pelo cinema "imperialista", só posso confessar o desamparo das minhas incertezas face às imagens de Nova Orleães. E não vou recorrer à auto-indulgência da piedade pelos outros - aprendi isso no melhor cinema americano.
»

João Lopes, Diário de Notícias 10/9/2005

[João Silva]

sexta-feira, setembro 09, 2005

Silly season, silly city

Em Setúbal, preparou-se um circo e a resposta foi boa. Às 16 horas, hora em que se trabalha, houve quem saísse à rua para ver uma implosão de torres excedentárias em Tróia. Diz quem viu que se festejou e aplaudiu o momento da demolição, logo seguido de bailarico, em certo local de Setúbal.

[João Silva]

Contracção da vida

Enquanto dois homens pensavam no que levar do supermercado, tu entravas e saías de sacos cheios. Gostavas de ser mais rápida que a vontade e ter o domínio do teu ser. Se tivesses de ser algo, recusarias sê-lo, sendo que, para ser, só por ser, já eras perfeita. No regresso aos locais, poderia jurar que procuravas pisar as tuas próprias marcas, enquanto os teus lábios se contraíam num risinho de afinco infantil, como se entrasses em água quente.

[João Silva]

quinta-feira, setembro 08, 2005

Armagedão

H. acordou em sobressalto. O sol tentava entrar por uma nesga da janela do quarto, como que ameaçando uma total destruição. Se o mundo e os homens pagassem, naquele momento, todos os seus pecados, H. apenas fecharia os olhos de prazer, de tão apaixonado que era pelo fim das coisas.

[João Silva]

Escavo o rasto dos teus passos

Escavo o rasto dos teus passos:
o mundo
derrama-se
na cavidade que fica,

volto a amar-te
no limite febril de mim mesmo,

tu folheias, agora terra fina,
os meus remotos
testemunhos.


Paul Celan, A Morte é uma Flor

[João Silva]

quarta-feira, setembro 07, 2005

Stand Up and Be Counted II

Kirsten Dunst é, ao que parece, uma grande candidata a destronar a batida Jane Fonda do catedrático lugar de activista social e humana do mundo e, quem sabe, dos arredores. Afirmo isto com a minha energia psíquica de rastos, já que não me agrada nada denunciar desta maneira vil uma jovem mulher tão bela e graciosa. Mas são assim as coisas e a bela Kirsten não tinha nada que ir para Veneza dizer que está cheia de vergonha da administração política do seu país.

[Paulo Ferreira]

Stand Up and Be Counted

Jane Fonda, activista de renome que também dá uma perninha no mundo da representação, decidiu dar um conjunto de palestras no seu próprio país, de forma a que as tropas americanas retirem do Iraque. Parece-me que o activismo nunca entrou muitas vezes na área da inteligência. Jane Fonda, ao defender uma hipotética retirada, que seria funesta para os próprios iraquianos, é exemplo disso mesmo.

[Paulo Ferreira]

Matchstick Men



Ridley Scott não é, certamente, um dos meus realizadores de eleição. Talvez pela sua escolha de temas. Talvez pela sua tentativa, habitual, de fomentar o over-acting em muitas cenas. Mas, certamente, pelo resultado dos seus filmes (que julgo não ser acidental). Nem sempre, no entanto, falha, pois certos géneros vivem da intensidade gratuita de algumas cenas. Tenho nos meus favoritos, dentro de cada género, as suas incursões na ficção científica (Alien, 1979, e não Blade Runner) e nos filmes de guerra (Black Hawk Down, 2001, mesmo que longe do ideal). Mas nunca o tive em grande conta. No entanto, em 2003, Ridley Scott sai-se com uma pequena pérola, despretensiosa, simples, pouco ampla, mas bem construída, com personagens delineadas sem dramas épicos (contraste-se com o gladiador de Russell Crowe) e com interpretações de actores que sabem o que querem. O filme? Matchstick Men.

Matchstick Men é subvalorizado. De forma rebuscada, faz lembrar Adaptation (2002, Jonze/Kaufman). De forma pessimista, Nicolas Cage ainda traz os «tiques» de Adaptation. Aqui é Roy Waller, um «ás da burla» que, juntamente com Frank Mercer (o excêntrico Sam Rockwell), ocupa os seus dias vigarizando os incautos com complexos esquemas de vendas. Tudo corre sem perigo até à chegada de Angela (Alison Lohman, Alison Lohman...), que afirma ser filha de uma antiga e quase esquecida relação de Roy. É então que a vida de Roy vai mudar completamente, encontrando uma faceta mais humana, «normal», debaixo das camadas de obsessões e tiques que atormentam a sua vida e o seu historial psiquiátrico. Não há, no filme, exames de consciência pessoal nem lições de moral, apenas uma caminhada em direcção a um final inesperado. «Lie cheat steal rinse repeat», assim é o slogan publicitário de Matchstick Men. E, na verdade, Ridley Scott bem o pode repetir pois, desta vez, acertou em cheio.

[João Silva]

terça-feira, setembro 06, 2005

Um poema

Passados anos desde o meu primeiro contacto com um poema, sinto-me com legitimidade suficiente para afirmar que esse primeiro contacto foi o que mais me marcou. Possivelmente, as primeiras imprecações amorosas da vida adolescente serão aquelas que mais marcam a vida sentimental de um indivíduo. Tanto mais que, agora, quando leio poesia, tento sempre procurar aqueles primeiros versos inexoráveis da minha adolescência nos versos que se encontram à frente do meu olhar. Quando releio o poema, o meu primeiro poema, encontro, com efeito, várias das imagens que me acompanharam durante alguns dos anos que gastei na inconsciente vida de criança. Assim, encontro: uma fotografia da jovem amada (era uma paixão fatal, daquelas que matam); uma parede com dois nomes riscados a marcador, que simbolizavam o feitiço encantatório da loucura, um autocarro; uma janela (ainda hoje fechada, por sinal); um perfume; um casaco de Inverno azul; uns caracóis aprumados, típicos de jovem adolescente que se preze. Enfim, encontro um passado que, embora não tenha sido muito dignificante para a minha pessoa, deixou saudades. Encontro o passado, na terceira pessoa. É por me transportarem tantas vezes para o passado que aqueles primeiros versos da minha vida serão sempre os primeiros e, quiçá, os últimos.


Um amor

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados.
Depois, na rua, ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.


- Nuno Júdice, A Partilha dos Mitos

[Paulo Ferreira]

M.

M., rapariga meio ignorante, gostava de acabar os seus textos com uma citação. Até ao dia em que percebeu que os livros que lia não lhe serviam de muito.

[Paulo Ferreira]

Das duas uma:

Ou Valentim Loureiro não tem noção daquilo que diz ou a política portuguesa resume-se ao calendário de um campeonato de futebol.

[Paulo Ferreira ]

segunda-feira, setembro 05, 2005

A América e os outros

A imprensa europeia, os jornais portugueses, as televisões portuguesas (até mesmo a vetusta «radiotelefonia portuguesa») e a opinião popular nacional já começaram a apontar baterias ao ímpio texano da Casa Branca. Para além de realçar, com um sarcasmo subtil mas que não passa despercebido, o facto de George W. Bush ainda estar de férias, o Público já acusava, na edição de sábado, o enorme peso do tema actual: a metafórica «passagem do furacão pela Casa Branca».

Mas não só os jornais estão «em cima» do acontecimento. Também a televisão, através de jornalistas com mais liberdade de movimentos, já deu o seu voto de pesar pelo furacão, logo seguido de uma análise profunda do Estado da Nação. Pergunta-se: «Como é possível que um país como os EUA seja apanhado desprevenido?». Uma pergunta que, dependendo de quem a faz, pode ou não trazer um infantil (mas não inédito) sarcasmo que nos dá a volta ao estômago, e que já não ouvia há quase 4 anos. Luís Costa Ribas, um jornalista que alguém (felizmente, não me lembro quem) já apelidou de «isento», exibia um profundo esgar de choque uns dias depois da passagem do furacão pelos Estados Unidos. A causa imediata? O furacão? Não. A destruição? Talvez, mas a razão era outra: as declarações do presidente Bush. Costa Ribas, reconheço, é, embora declaradamente anti-republicano, alguém que me parece gostar muito da América. Agora as razões pelas quais ele gosta do país, parecem-me ocultas.

Na verdade, toda esta azáfama política que começa a pesar, mais por obra da imprensa europeia do que da imprensa e orgãos políticos americanos, sobre os ombros de Bush faz-me lembrar aqueles momentos, tão tristemente, embora com uma aura quase cómica, repetidos no Médio-Oriente, em que, após um acidente de uma carroça que dá em explosão de combustível numa esquina obscura de uma aldeia, sai uma manifestação à rua: «Foram os americanos!», gritam, «os americanos!». Ironicamente, aos aldeões, tal como aos jornalistas do nosso continente, escapa o mais importante: nunca compreenderão porque é que, odiando tanto um país como os Estados Unidos da América, não conseguem deixar de pensar nas suas próximas eleições presidenciais.

[João Silva]

Popeye

Regresso ao mundo real. E aos angustiantes outdoors das autárquicas. Na bagagem, saudades de filmes de um dos maiores actores de sempre. Tal como deste blog. Ambos merecem este post...



[João Silva]

Regresso

Estranhamente, já começava a sentir saudades de um Ministério da Cultura.

[Paulo Ferreira]

«Rainha má»

A propósito de perfeição, aqui fica um excerto:


Monica Bellucci

[Paulo Ferreira]

Título a evitar

Parece ridículo mas não é. A imprensa portuguesa continua a sua saga antiamericana, escondendo o ódio a um país através do ódio a um presidente. Títulos como «Bush volta a Nova Orleães com muito por explicar» deveriam ser evitáveis num jornal que se quer isento, como me parece ser o caso do Diário de Notícias.

[Paulo Ferreira]

domingo, setembro 04, 2005

«Lindos nadas»

Escrever sem assunto tornou-se, desde há alguns meses atrás, uma das minhas maiores rotinas. Mas, se se tiverem em conta algumas das principais rotinas de algumas pessoas «famosas» (leia-se «pessoas conhecidas pelo grande público sem razão aparente») deste nosso país, chegar-se-á, facilmente, à conclusão de que escrever sem assunto não é uma coisa muito censurável. Manuel Maria Carrilho, à semelhança de José Sócrates, tem o terrível hábito de muito falar sem nada pensar. A sua campanha por Lisboa é exemplo dessa inanidade mental. Existe, ainda, um senhor que, por ser um dos grandes percussores desta tendência para muito falar sem nada pensar, tem de ser referido. Esse senhor é Pedro Santana Lopes. Ainda hoje tenho guardado na memória um discurso em que o ainda Presidente da Câmara de Lisboa gritava, a plenos pulmões, como se estivesse a recitar uma qualquer receita para combater o défice, qualquer coisa como : «O meu nome é Pedro Santana Lopes!». Julgo, até, que essa frase foi a essência do seu discurso. Portanto, pelos escassos exemplos que dei, é possível concluir-se que existem coisas bem piores do que escrever sem assunto. Existe, a título de exemplo, a incapacidade mental para realizar certas tarefas que, à partida, não parecem dotadas de uma grande dificuldade de concretização, entre outras coisas que terão de ser enumeradas num outro dia de maior inspiração.

[Paulo Ferreira]

sábado, setembro 03, 2005

A propósito da festa no Seixal

‘Não há meias medidas perante a Revolução!’ Ora essa! Há meias medidas onde quer que haja homens, e não máquinas... Ele quer fabricar revolucionários como Ford fabrica automóveis!

André Malraux, Os Conquistadores

[Paulo Ferreira]

La Place de Révolution

Louis XVI was executed on the morning of Monday 21 January 1793 but it was four days before the news reached London. On 25 January “The Times” printed a detailed report describing the King’s last hours. He had taken an affectionate farewell of his family at 6 am and had been driven through the hushed streets of Paris in the mayor’s carriage to La Place de Révolution. The guillotine had been set up beside the pedestal which had formerly supported the statue of his grandfather. Dressed in a brown greatcoat, white waistcoat and black breeches, he mounted the scaffold with composure, attended by an Irish priest as his confessor. His attempt to address the crowds was drowned by the beating of hundreds of drums from the massed ranks of the soldiers surrounding the guillotine. The executioner laid hold of him and at a quarter past ten the blade came down. When his severed head was held up by the executioner the people threw their hats in the air and let out a great shout of ‘Vive la Nation!’

David Cordingly, Billy Ruffian, The Bellerophon and The Downfall of Napoleon

[Paulo Ferreira]

sexta-feira, setembro 02, 2005

Prática política

Manuel Alegre não é, nem nunca poderia ser, um político exemplar. Bem vistas as coisas, Manuel Alegre nem sequer é um político, embora se possa compreender que, devido a alguns desatinos da história portuguesa contemporânea, a nossa sociedade se tenha habituado a ver homens crescerem no mundo político através de simples gritos ou de simples palavras de ordem. Não poucos são os que afirmam que a política se faz através de boas intenções ou de bons sentimentos. Sendo Manuel Alegre um homem que tem por palavra de ordem o sentimento, não é, então, de estranhar que os gritos de revolta contra o regime salazarista tenham tornado o membro do Partido Socialista uma figura respeitável.

Num país um pouco mais desenvolvido do que o nosso, Manuel Alegre poucas hipóteses teria para se tornar uma figura política mediática de relevo. Ora, Alegre, apesar de não ser uma figura muito respeitada pelas suas ideias políticas, tem uma importância mediática enorme na nossa sociedade. Não sei se essa importância mediática se deve ao facto de a pessoa em questão ser um poeta comercial ou se se deve a qualquer outra razão, mas, a verdade é que Manuel Alegre é uma figura mediática. Julgo que é através deste mediatismo, não correspondido a nível ideológico, que se podem encontrar a honestidade e a firmeza de carácter de Alegre. Com efeito, Alegre, como já atrás referi, não é um político na verdadeira significação do termo. Porém, se se tiver em conta que Alegre poderia usar a seu favor o grande mediatismo de que é proprietário, poder-se-ia concluir que não existem, em Portugal, muitos políticos que tenham um carácter tão honesto e virtuoso quanto Alegre. Isso deve-se a um simples pormenor: Manuel Alegre, ao contrário de personalidades como Mário Soares, por exemplo, não usa o mediatismo para apagar todas as suas faltas de educação política. Não, Alegre sabe, embora de forma romântica, que não tem qualquer tipo de credibilidade dentro do seu partido, mas, mesmo assim, não deixa de defender a velha cartilha, que aprendeu nos tempos de Argel. Mário Soares, ao contrário do seu companheiro de muitas jornadas, continua a usar toda a influência de que é possuidor em vários sectores da sociedade portuguesa, para esconder a sua profunda ignorância em vários domínios políticos.

Por outro lado, Mário Soares e Manuel Alegre têm uma característica comum, que faz com que sejam, ambos, bastante diferentes da maioria dos políticos portugueses. A maioria dos políticos portugueses, e não só, pertence a uma classe, digamos, técnica, que julga que as soluções para os problemas de um país se encontram em sebentas do género «Como se tornar um líder eficiente em 90 dias!»; pertence a uma classe educada para resolver problemas muito limitados temporalmente. Soares e Alegre não são exemplos para ninguém a nível político, até porque sustentam ideias demasiado perigosas para se poderem colocar em prática numa realidade perigosa, como é a nossa, mas, pelo menos, têm a vantagem de serem cultos.

Com tudo isto, não quero dizer que seria capaz de votar em indivíduos como Alegre ou Soares. Quero apenas dizer que existem coisas que, muitas vezes, escapam às realidades práticas da política, visto serem mais profundas. Soares, apesar de ser uma figura deveras respeitável, não é um bom exemplo de profundidade política, ou de tradição política, isto apesar de autores como Oakeshott defenderem que nada é imune à mudança, ou que tudo é temporário. Porém, autores como Oakeshott também diziam que o factor «continuidade» é deveras importante para que se compreenda a importância da tradição política. Já Manuel Alegre é, sem dúvida alguma, um político que, ao longo da sua vida, teve uma firmeza de ideias e de carácter enormes. Mesmo que as suas ideias se tenham perdido com o tempo, ou que estejam paradas em meados do século XIX, nada impede que o político-poeta seja um dos maiores exemplos de honestidade no nosso país. É por causa dessa honestidade, para consigo próprio e para com os outros, que eu sempre simpatizarei com o senhor que, um dia, se lembrou de escrever um poema dedicado a Luís Figo.

[Paulo Ferreira]

quinta-feira, setembro 01, 2005

Agradecimento

É preciso ficar doente para que um dos meus blogues preferidos coloque o Lusitano em destaque.

[Paulo Ferreira]

A arte de fazer rir

Preocupado com os problemas que, normalmente, se abatem sobre a cabeça de um indivíduo comum, dirigo-me a um local que dá pelo nome de SOERAD. Sendo um facto que nada neste país se faz sem uma longa espera, dirigo-me ao dito local com um certo nervosismo guardado debaixo da língua. Sabia que aquele nervosismo seria a melhor arma para vencer a burocracia das meninas que, habitualmente, pensam que para se tirar um qualquer exame, é necessário que se vá a uma repartição das finanças buscar um recibo ou qualquer outra coisa que lhe valha, que comprove a sanidade cívica de uma pessoa. O certo é que, quando cheguei ao meu destino, vi comprovadas as minhas preocupações. Lá estava a chusma habitual, a discutir as probabilidades de o Zeca ser filho do Barrabel, ou simplesmente a cantar em coro as vicissitudes da vida. Sento-me ao lado de um senhor que, pela sua aparência, dava ares de ser vetusto. Não me enganei, já que o senhor era mesmo um homem com larga experiência de vida. Mal me sentei e olhei para o infinito, o senhor tratou de me tranquilizar: «Aqui ou se espera ou vai-se andando!». Senti-me reconfortado. Passados cinco minutos, devido a qualquer coisa de que, até então, não me apercebera, a conversa mudou de formato. Mudou tanto que o senhor já me dizia coisas que, para a minha mente excessivamente preocupada com a minha pessoa, não faziam sentido. «Aquele material, a reboque do meu Ford , acabava com o meu reumático». Só momentos depois de ouvir esta curiosa frase, percebi que a expressão «aquele material» era metáfora para o respeitável rabiosque de uma jovem mãe que, devido ao conhecido temperamento acolhedor de que padecem os portugueses, se via obrigada a esperar a sua vez de pé, com a criança ao colo e com as suas formosas pernas em risco de se deteriorarem. E assim, deste modo divertido, consegui passar as horas de espera nas instalações da Sociedade de Estudos Radiológicos.

[Paulo Ferreira]