sábado, maio 28, 2005

Escapadelas

Em Barbárie da Ignorância, George Steiner afirma: «Estive na China na minha qualidade de professor. Conheci lá colegas que as torturas dos Guardas Vermelhos tinham deixado estropiados. Fizeram chegar a Jean-Paul Sartre uma carta que dizia: “Diga alguma coisa, você, o Voltaire do nosso século, faça alguma coisa.” Tinham até estudado em Paris, com Sartre. Ao regressar a França, Sartre dirige-se ao Vel d’hiv para explicar que os boatos que correm sobre as sevícias praticadas pelos Guardas Vermelhos são propaganda da CIA americana. Sartre durante toda a sua vida, desfiou mentiras, umas atrás das outras, sobre as tiranias. Incluindo, também, a de Cuba, onde há poetas e escritores mantidos há trinta anos em regime de incomunicabilidade!»

Tal como Sartre, muitos dos intelectuais de hoje, que gostam de apontar o dedo indicador para as supostas mentiras dos outros, mentem. Mentem, especialmente, quando se torna necessário defender as suas ideologias, ou atacar ideologias adversárias. Às vezes, essas mentiras têm mais que ver com simples caprichos do que com ideologias. De qualquer forma, é sempre interessante constatar-se que, quem melhor sabe mentir, é quem passa incólume. Por exemplo, Francisco Louçã, quando os Estados Unidos decidiram retirar Saddam Hussein do poder, referiu-se, várias vezes, às mentiras dos «imperialistas americanos», no que diz respeito às razões dos lacaios de Bush para a guerra . Porém, ao apontar o dedo aos americanos, também Louçã mentia, com falsos dados e muitas contradições à mistura. Mas, depois de mentir, Louçã não ficou conotado como um mentiroso, pelo menos para a opinião pública. Já os americanos, tornaram-se, se já não eram há longas décadas, vilões.

Assim, é possível concluir-se que a legitimidade moral é sempre deveras importante para muita gente, quando essa legitimidade moral só tiver de ser justificada por quem dela precisa. Francisco louçã, como Jean-Paul Sartre, pode mentir quantas vezes quiser, visto não lhe serem exigidas responsabilidades directas sobre essas mesmas mentiras. Além disso, quem precisa de legitimidade moral é quem detém o poder. Sartre sabia-o. Por isso é que não hesitava em pôr a pressão toda do lado dos poderosos, dos malvados americanos, que sonhavam, já naquele tempo, com coisas tão nefastas como a existência de democracias em sítios onde vigoravam regimes tirânicos.

[Paulo Ferreira]