Escrever no Verão
Escrever no Verão tem, sem dúvida alguma, várias desvantagens que, por serem tão óbvias,não necessitam de ser enumeradas. Por outro lado, escrever no Verão tem algumas vantagens, entre as quais se destaca o facto de, no Verão, haver uma liberdade total para a «escrita partilhada», visto que é, principalmente, nessa estação que ninguém lê. Ou seja,é no Verão que o indivíduo vulgar atinge alguma liberdade para dar asas às maiores alarvidades.
Para além das vantagens e das desvantagens de escrever no Verão, existem ainda alguns empecilhos à escrita que devem ser enumerados. Desde já, um dos maiores obstáculos à escrita na estação do calor é o próprio calor. Com efeito, o calor, sendo um dos grandes inimigos do pensamento, impede a escrita. Ao calor juntam-se outros dois factores que, devido ao calor que faz neste preciso momento em que escrevo, me levam a crer que estão relacionados com o advento do próprio calor. Assim, os outros dois factores são: o «factor pernas musculadas e brozeadas que dão vontade de abraçar quando se movimentam» e o «factor vazio». São, então, estes dois factores que, sempre relacionados com o calor, fazem com que um cidadão inocente não consiga escrever algo minimamente decente. Dentro destes três factores, sempre em correlação uns com os outros, sobressai, pela sua complexidade semântica, o «factor vazio».
O «factor vazio», como o próprio lexema «vazio» indica, engloba todas aquelas horas de calor em que o cérebro comum se restringe às faculdades de fazer o corpo funcionar (mal, diga-se), engloba todas aquelas horas em que o opaco olhar humano fica a observar o infinito, numa inércia quase assustadora e engloba, ainda, as palavras «expira» e «inspira». Estas duas palavras, se não fossem referidas, limitariam toda e qualquer compreensão do «factor vazio». Estas duas palavras, embora nada pareçam adiantar a toda esta divagação, têm uma importância enormíssima, já que é nos momentos de calor e de maior quietude (não concebo qualquer tipo de movimento debaixo do espectro do calor) que estas duas palavras mais fazem sentido para a pobre mente humana. Aliás, nos momentos de calor e de maior quietude, só estas palavras fazem sentido. Ora vejamos: passa uma perna bronzeada pela rua, o indivíduo pensa «inspira, expira»; passa um incêndio na televisão e o indivíduo, assustado, pensa com medo que lhe falte o ar «inspira e expira»; passa um livro pelas mãos do indivíduo e o indivíduo, que pensa em tudo menos em ler (atenção que não me refiro à minha própria pessoa, porque eu, à semelhança de todos esses milhares de amantes de Dan Brown e de outros afins, gosto muito de ler), sente o coração a bater no cérebro, como se repetisse, incessantemente, as seguintes frases: «A tua função hoje não é ler, é respirar. Vá!, canta comigo: inspira e expira». Portanto, é de concluir que, para além das vantagens e das desvantagens da escrita no Verão, o que importa é ser-se louco e, como diria um conhecido, «I'm the t-shirt».
[Paulo Ferreira]
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