terça-feira, agosto 02, 2005

O desaparecimento do papel

Quando um jornal acaba, como o Comércio do Porto, é costume falar-se em revolta, em conspiração, em armas e em sangue. É costume ainda repetir-se uma frase que, sendo tão ingénua, chega a levar muita gente às lágrimas. Essa frase é, mais ou menos, do género «eles cortaram-nos o dinheiro mas não nos silenciaram». Ora, esta frase que, dita por mim, não emociona ninguém, é portadora de quase toda a essência humana. Com efeito, afirmar que «eles cortaram-nos o dinheiro mas não nos silenciaram», é a mesma coisa que afirmar que «sabemos que vamos morrer mas andamos à procura do elixir da vida eterna». Ou seja, é através de frases como aquela que é possível chegar-se à conclusão de que, por mais livros que se escrevam, o Homem deve mais à irracionalidade do que a coisas tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexas como o pensamento (não falo em racionalidade porque o Iluminismo ainda me deixa muitas noites sem dormir).

A extinção do célebre jornal portuense pode chocar algumas pessoas mais sensíveis à tradição. Aliás, é de saudar o facto de ainda existirem pessoas sensíveis à tradição. Porém, quando alguma coisa desaparece, como é o caso de um jornal com muitos decénios de tradição, a única coisa a fazer é chorar com saudade. Não vale a pena procurar conspirações ou revoltas armadas, nem sequer vale a pena dar continuidade a uma coisa desaparecida através de um blogue, por exemplo. Afinal, o que motiva os leitores de jornais a sentirem comiseração para com um jornal com muitos anos de tradição é o papel. Não é a qualidade das notícias nem a simpatia dos jornalistas do referido jornal que fazem a tradição. Pelo contrário, a tradição é conseguida através de muitos anos de impressão de tinta em papel; é conseguida através dos quiosques madrugadores, que se atrevem a inundar o céu com a brisa dos jornais chegados de fresco. É por isso que a frase «eles cortaram-nos o dinheiro mas não nos silenciaram» não faz qualquer sentido face à extinção de um jornal. Quando os jornais deixam de aparecer nas bancas e, por conseguinte, as pessoas deixam de sentir o seu cheiro e a sua tinta nos dedos, não há nada a fazer, a não ser arranjar dinheiro para recolocar o jornal em funções.

[Paulo Ferreira]