quarta-feira, setembro 21, 2005

No comboio correio entre Beja e Lisboa (fim dos anos 50)

Era o tempo em que o comboio parava em todas
as estações: o comboio correio, a caminho de lisboa,
levando famílias da província para passar o ano
com os parentes de lisboa. Nessas paragens,
quando se fazia o silêncio
depois do guinchar dos travões, o chefe da estação
anunciava o nome da terra: terras que só existiam
de nome, para quem viajava no comboio, à noite,
a caminho de lisboa, e se reduziam a apeadeiros
de luz apagada no meio do campo. Por vezes, entravam passageiros
com grandes malas e cestos de fruta. Era a única animação
da carruagem nocturna: vê-los encaixarem as malas
e os cestos, antes de se sentarem em silêncio
nos bancos de madeira desses comboios do inverno. Mas
na estação de beja era diferente: era onde as vendedeiras
assaltavam as carruagens, vendendo água em bilhas
de barro. Eu pedia água, não por causa da água mas para ficar
com uma bilha de barro, dessas que partem o gargalo à primeira,
mas que deixam na boca um travo puro a terra. Às vezes,
quem vendia a água eram crianças de samarra apertada
até ao pescoço. Não diziam nada; e
passavam devagar, por entre os bancos, olhando à direita
e à esquerda, como se quisessem levar consigo
o destino de cada um de nós. Pergunto-me, hoje, se
o meu não terá ido, de facto, colado a um desses olhares; mas
lembro-me, depois, do casal que se abraçava, à minha frente,
enquanto a noite ia passando a caminho de lisboa. O seu destino,
esse, fui eu que o roubei: o amor nocturno, num banco
de comboio, enquanto o tempo passava entre beja e lisboa; e
atirei-o ao rio, nessa noite fria entre o natal e o fim
do ano. Era o tempo em que o comboio parava
em todas as estações, o tempo em que o único destino do amor
era ser atirado à água, no fim da noite, antes que
a luz da madrugada caísse sobre
o inverno de lisboa.


Nuno Júdice, Teoria Geral do Sentimento

[João Silva]