A serenidade perturbada
Para quem tem o hábito de ler em cafés, como eu, não existem muitas coisas que possam perturbar a concentração que o hábito da leitura requer. No entanto, existe uma coisa que é capaz de fazer com que a leitura de uma simples página se pareça com a leitura integral do Antigo Testamento (falo por mim). Exceptuando essa coisa que é coisa porque, na altura em que se lê, as pessoas tomam o aspecto de coisas inanimadas, nada há que incomode o leitor de café. Nem as risadas estridentes dos senhores bancários que se deleitam com a abstracção dos índices de mercado incomodam. Porém, como já referi, existe uma coisa: as mulheres. Com isto, não quero dizer que o indivíduo, que se senta num banco de café para ler, se sinta constrangido ou fascinado de cada vez que pressente a presença de um nobre membro do sexo feminino à sua frente. Pelo contrário, a serenidade da leitura só é perturbada em raríssimos casos. Por exemplo, nos casos em que, a um levíssimo cheiro a maquilhagem, se aliem dois pés bonitos (o leitor de café não ergue totalmente a cabeça do livro que anda a ler,por conseguinte, os pés são, na maior parte das vezes, a primeira e a última coisa do corpo humano que se vê).
A serenidade não é algo que se obtenha facilmente. Não. É uma coisa que se alcança ao longo de vários anos de persistência. No caso do leitor de café, a serenidade é alcançada depois de várias dezenas de páginas lidas. Por isso é que é difícil que quem lê nos cafés caia no pecado da desconcentração. Porém, existem sempre coisas que são impossíveis de evitar. Eu, pessoalmente, não consigo evitar pés de mulher enfiados em sapatos de secretária. Outros terão diferentes taras, que podem sair dos livros ou não.
[Paulo Ferreira]
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