Uma manhã no café
Existe um café, num bem afamado bairro de Lisboa, que tem a infelicidade de me ter como cliente assíduo. A infelicidade do café, ou do seu gerente, deve-se ao facto de eu passar horas e horas sentado numa cadeira a ler,sem nada consumir para além de um bolinho e de um café. Acontece que, num destes dias em que me distraía suavemente com a escrita de Fernando Namora, ao mesmo tempo que o dono do café parecia ameaçar-me com uma bandeja de cafés, vejo uma senhora devidamente acompanhada pelo seu marido a olhar para mim. Eu, como indivíduo de fina educação que sou, tratei logo de olhar para a senhora com uma fixidez avassaladora. Mas a senhora, vendo que o meu interesse por ela parecia ainda maior do que o seu interesse por mim, tratou de mostrar rapidamente toda a sua classe. Deu uma dentada no pastel de nata e descalçou subtilmente um dos seus sapatos de secretária. Depois aconteceu o óbvio: a bendita senhora enfiou o seu delicado pé na imaginação do seu admirador, ou seja, entre as pernas do seu marido. Mal vi aquilo, senti a minha face corar. Mesmo assim, não deixei de olhar para o pé da senhora, nem a senhora deixou de olhar para mim. A certa altura, o jovem esposo da ditosa mulher desaparece de cena, deixando-me antever um futuro de delicadas escapadelas matrimoniais. O espaço ficou vazio entre mim e o pé daquela mulher. mas eu não aproveitei o espaço e deixei-a fugir com aquele sorriso típico de mulher francesa. «Afinal, um café serve para ler livros e, além disso, o Margaça não gostaria de assistir a poucas vergonhas no seu estabelecimento!», pensei.
[Paulo Ferreira]
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