Vidas no Café VI
O Café é um ser. Tudo indica que sim. Tem personalidades diferentes, comporta «sentimentos» específicos, tem preferência por certos ambientes, etc. Sobretudo, os frequentadores típicos de um género de café não irão a outros que se encontrem num extremo oposto. Há muita evidência de que a frase-tipo «diz-me com quem andas...» funcione quando nos referimos a cafés. É verdade que personalidades não se misturam.
Por exemplo, caso um rapaz (aliás, real) que aprecie bigodes artísticos e minimalistas resolva inovar, terá alguns problemas de aceitação no snack-bar de um bairro com nome de cigana velha. Ao entrar no café, a meio de um jogo de campeonato, o dono e animador local, arreliado pelo resultado, certamente terá um choque ao dar de caras com um bigode que não tenha a metade esquerda. A unha do dedo pequeno penetrará o ouvido e tentará desvendar, pelo canal auricular, a identidade da personagem que ameaça a sua hegemonia no bairro.
Já o contrário também acontece, isto é, também o grupo de bigodes minimalistas sente a sua privacidade invadida quando um homem, numa idade já avançada e plena de experiência de vida, se senta numa das mesas a meia-luz do café nocturno e reafirma, a plenos pulmões, como se se libertasse de uma mordaça, que «a URSS se esfarelou». Após uma lista de opiniões políticas tocadas por alguma amargura colonialista, bate com o punho fechado no ombro do rapaz do bigode minimalista e grita, de olhos lacrimosos: «Sócio, isto o que Portugal fez com África foi: dobrámo-nos para a frente... e até levámos a vaselina». O rapaz do bigode desmaiou.
[João Silva]
<< Home