Tristesse II
Dizia, há tempos, um caro amigo que deplora o facto de se associar a infelicidade pessoal ou privada de um escritor à suposta «genialidade» da sua obra. Isto é, o que esse meu amigo queria dizer era que o escritor «não precisa de sofrer» para ser um bom escritor. De facto, tem razão. E não tem.
O que é, portanto, «sofrer»? Aquilo a que se chama sofrimento tem muitas faces, muitas interpretações, muitas modas. Para uns, sofre quem «não é feliz». Para outros, sofre quem tem dores. Para aqueloutro, sofre quem não tem ninguém. Ainda para uns, sofre quem gosta de sofrer. No fundo, todos têm razão. O «sofrer» é alvo de diversas interpretações, das mais apolíneas, rígidas, às mais natalícias, mais comerciais (sofre quem é feio ou quem não se sabe apaixonar). Mas o sofrimento «pré-destinado» é, parece-me, aquele do qual ninguém se lembra.
É perfeitamente dispensável Mas, no entanto, rodeia certos autores de uma aura mística, inolvidável. É lendária a desgraça pessoal de Dostoiévski, «condenado» a gastar tudo nos locais de jogo (na verdade, o ínfimo conhecimento desse mundo inspirou-lhe pelo menos um livro e inúmeras cenas noutras obras), ainda que fosse considerável a sua fonte de rendimentos. É inesquecível o problema de Hemingway com o álcool e com a boémia. É violenta e marcante toda a vivência, toda a história de Nelson Rodrigues e da sua família no Brasil. Até Jünger pertence a um universo inatingível para a esmagadora maioria dos comuns mortais, visto que se conta que se feriu uma dúzia de vezes na I Guerra e uma dúzia de vezes lá voltou. Curiosamente, Jünger só morreria à beira de completar 103 anos, um pouco como uma concessão, e também uma piada de mau gosto, dos deuses aos bem-aventurados.
O escritor não precisa de «sofrer» publicamente, não precisa de ter podres nos seus assuntos privados, não precisa de polémica, brigas, suicídio, boémia, desgraça ou qualquer outro páthos para se poder dedicar inteiramente a uma escrita que roçe o sublime. No entanto, são esses «males», essas misérias pessoais que os imortalizam, dando à sua obra toda uma outra leitura, toda uma outra vida paralela. E isso está, penso eu, para além da gramática.
[João Silva]
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