Contra o infame multiculturalismo
Nos últimos tempos (nos últimos anos, digamos), muito ouvi falar de um «fenómeno» social que parece ter-se apoderado das mentes mais progressistas. Esse «fenómeno» é o infame multiculturalismo. Na verdade, tanto ouvi falar na irritante «devoção ao multiculturalismo» que passei a dedicar alguma repulsa, não só ao conceito, mas até à simples palavra. Ou tenha passado a sentir, talvez, uma simples oposição ideológica algo alterada por razões emocionais. No fundo, a diferença entre aqueles que acreditam no sucesso do multiculturalismo e aqueles que não o fazem está, não na origem, nem no possível fruto dessa disposição legal mas, salvo algumas generosas excepções, no próprio conceito de multiculturalismo. Há toda uma confusão semântica, sociológica e pessoal que induz ao simples erro de pensar o seguinte: que a «disposição multiculturalista» é a única que permite a existência dos outros, ou seja, que o multiculturalismo é a afirmação da tolerância cultural. Não é. Muito pelo contrário.
O multiculturalismo (novamente me pergunto: «o que é?») é, precisamente, a desmantelação abrupta do pluralismo anglo-americano, aquele que se pode considerar o expoente máximo do respeito pelas culturas mas, sobretudo, pela pluralidade de escolha. O multiculturalismo não é a «doutrina» da tolerância, mas sim a ausência da mesma. É fundada no garante comezinho «eu sou católico, tu és islamista, não se fala mais nisso para que não haja confusão entre nós, ok?». Resumindo a diferença, o multiculturalismo é a própria destruição da «harmonia» liberal que é intrínseca à cultura inglesa mas que é a base última dos Estados Unidos da América. É a destruição do pluralismo norte-americano que, sem dúvida, está à cabeça da tradição liberal da humanidade (poupem-me os pigarros antiamericanos). É o consumar da crença relativista na igualdade de todas as culturas. Será essa noção igualitária assim tão boa?
Esta nova «tradição multiculturalista» surgiu, talvez, na América dos anos 60, na forma de uma contra-cultura. Surge em oposição à tradição exclusiva da América (EUA) como ideia de civilização, ou seja, da América nascida e construída devido à confluência de muitas culturas diferentes, «importadas» de livre vontade. Hoje, parece ter-se perdido essa vontade, da parte de cada um, da parte cada imigrante, de debitar, oferecer as suas influências e tradições culturais originais à definição da cultura americana. Essa contribuição livre (e a palavra chave é livre) para o enriquecimento da civilização americana é a maior lacuna dos nossos tempos. Juntamente com a tradição da liberdade americana, essa contribuição cultural, feita de livre vontade, forma a singularidade dos Estados Unidos da América, que parecem ter passado, exceptuando as questões raciais que se importaram dos países europeus, à margem das grandes questões e guerras culturais que tiveram lugar na Europa, como a Grande Guerra. O grande argumento que prova a trivialidade, e mesmo o perigo (note-se a hostilidade entre «comunidades»), do multiculturalismo é, mesmo, a premissa da tradição do melting pot norte-americano: «qualquer um se pode tornar americano aprendendo hábitos e tradições», integrando-se, em vez de se juntar em comunidades que exercem influência. Ou seja, como diz Newton Gingrich no seu Renew America: esta [os EUA] é uma civilização fundada na responsabilidade individual e não na pertença a grupos, sejam eles étnicos, religiosos, económicos ou outros. O multiculturalismo é o primeiro passo para a «balcanização» da sociedade, que, por sua vez, é o derradeiro passo para o ódio entre pessoas que, por vezes, até têm uma vida igualmente «normal», à excepção da língua, da religião ou da cor da pele.
No fundo, não seria preciso dizer tanto sobre o «tão pouco», e tão demagógico, que é o «fenómeno» do multiculturalismo. Bastaria dizer que «quer existir» como substituição à histórica tradição de tolerância anglo-americana (coisa que, note-se, nunca existiu na maioria dos países, incluindo Portugal - a «simpatia à portuguesa», para com os turistas, não é substituto à altura), e não como afirmação da mesma. As culturas não devem ter o mesmo valor, ou equivalência moral, que as pessoas. As pessoas mais fracas devem ser protegidas, mesmo que integradas, mas as culturas devem ser respeitadas tal como são, e o maior respeito que se deve ter pela mesma é permiti-la sobreviver segundo os seus maiores atractivos e forças. As culturas que valem a pena sobreviverão e, mais importante, contribuirão para o enriquecimento de uma nação, ou de uma ideia de nação. «Protegê-la» é desrespeitá-la, marginalizá-la e, o mais grave, é desrespeitar as outras. É impossível conciliar duas culturas diferentes tornando-as igualmente importantes em tudo. O grande triunfo dos Estados Unidos da América é saber (na maior parte dos casos) diluir diferentes culturas no exemplar melting pot civilizacional americano. Sem essa disposição, formam-se os comunitarismos e, mais tarde, a xenofobia, o racismo, etc. O multiculturalismo veio tentar «destruir» as fundações da América como civilização.
Todos falam em tolerância, mas ninguém consegue definir correctamente o que é a tolerância. Como dizia Isaiah Berlin, «um dos grandes contras da tolerância na sociedade é não ser levado a sério». Por oposição às trivialidades do multiculturalismo, aceito esse risco. Os EUA são a prova viva de que funciona melhor.
[João Silva]
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