Filho da burocracia
Um rapaz veio ao Mundo debaixo dos olhos atentos dos pais. Os rasgados sorrisos abriam-se sincronizadamente ao longo do corredor enquanto o pequeno português era carregado ao colo numa viagem real para outra sala. Os pais já sorriam e diziam: «o David nasceu». Seria esse o nome dele. Não havia outra maneira. Sem hipóteses de recuperar a tradição cortesã para festejar o nascimento do pequeno sangue-azul, os pais e familiares, de uma classe média pobre, saudosista mas de olhos reais, abraçavam os enfermeiros e o povo comum.
No entanto, nos meandros do registo civil, os jacobinos conspiravam. David é nome proibido. Sionista, diziam. Ainda por cima filho de ricos. «Como é que se chama o filho do sô engenheiro?». «Acho que é Davi», responderam. «Lê-se com dê, é Davide». «É isso sim». E assim foi. Os doutores da calçada (Dra. Gina, Dra. Amparo, Dra. Sãozinha, Dr. Memé) criavam, num rasgo humorístico, um nome muito português. Sem origens latinas, gregas, asiáticas, orientais, o nome Davide tinha uma nova origem: era um nome da República Portuguesa. Um filho do socialismo. Um filho, sobretudo, da burocracia.
[João Silva]
<< Home