Os meus problemas - Burocracia
O Estado «à portuguesa», ao longo dos tempos, indiferentemente dos tipos de governo ou dos modelos de estadistas ou governantes, sempre esteve (séc. XX) confinado a uma coisa: a burocracia. Esses tentáculos, indispensáveis à manutenção do nosso apego aos subsídios e facilidades do Estado socialista, são a nossa única ligação com o topo da hierarquia. A democracia representativa não tem grande influência nas nossas relações com os funcionários do Estado. Da porta das repartições para dentro, rebobina-se a construção civilizacional e a evolução das instituições civis - reinicia-se o «estado de natureza». Contra a função pública, e concorrendo contra outros pretendentes à gentil mão subsidiária do Estado, não há dúvidas: é a luta de todos contra todos.
No entanto, a única maneira de unir dois homens, ou mulheres, simples (secretário de Estado e o indivíduo que pedincha) é através do «papel». O «papelinho», como dizem as malogradas «doutoras da portaria». «Desculpe, mas vai ter que levar este papelinho ao Sr. Meireles ao Departamento Alternativo para carimbar, mas diga que vai da parte da Dona Manuela que ele despacha-lhe isso», e continua: «e tem, ainda, de passar na repartição das finanças para que lhe validem este requerimento para que possa cá voltar e pedir uma declaração extraordinária que lhe permitirá tirar senha para ir à secretaria e falar com alguém lá que lhe dará um papel com o que precisa para pedir os documentos para que possa ir para a fila que vai dar a outra fila que vai dar a uma sala onde vai esperar que lhe deixem entrar para uma salinha onde vai esperar que lhe digam se pode ou não vir cá entregar-me esse papel que aí tem na mão, está bem?». «Está bem», condescendemos nós, os totós, e lá iniciamos a nossa aventura.
No fim das filas e repartições, lá obtemos a permissão e voltamos à Dona Manuela. Ao lá chegarmos, um minuto atrasados, provavelmente encontramos a Dona Manuela levantando-se para o almoço. Correndo e chamando, ainda conseguimos a atenção dela. «Dona Manuela! Já cá tenho o papel, ainda bem que a encontro aqui! É só entregar!». Ao que ela responderá: «Mas o senhor está a brincar? São 13.01, hora de almoço. É que a gente trabalha aqui, não andamos aqui a brincar, ouviu? Ora esta, com a mania que é doutor...». Ainda perguntamos «não pode só aceitar isto e poupar-me uma tarde de trabalho?». Na asserção final, a Dona Manuela nunca disse nada tão correcto: «Desculpe, mas não posso! Portugal fecha à uma!».
[João Silva]
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