A travessia do vazio
É possível que a interminável miséria do homem tenha origem na média-longa passagem pela adolescência. Aliás, as probabilidades de um homem arruinar o seu futuro promissor são, perto das fronteiras da puberdade, as mais altas da nossa vida demasiado longa e demasiado insignificante. Salvo algumas louváveis excepções (transexuais ou yuppies precoces não contam), a maioria de Nós é, na vida adulta, o que foi (ou o que «não foi», que também é determinante) na adolescência.
A campainha ferrugenta da escola chamava, a certa altura, para os verdadeiros deveres da «malta». A «malta» ígnara, mas não fazia mal. Nada interessava para além do campo de futebol a ocupar, no meio da lama e dos trocos que os aplicados jogadores deixavam cair no meio do relvado imaginário. Se o que se passava fora da escola já pouco interessava, durante o jogo toda a Humanidade nos passava ao lado. Era apenas uma pequena espera pela bola de futebol rota e barata (comprada no Sr. Aníbal, ou Sr. Firmino, pouco interessava) para mostrar o que se valia antes de voltar para a «vida». Um toque bonito na bola, e o dever diário estava feito. Podia-se voltar para casa, pensando nas meninas e no momento fotográfico do toque na bola, tão perfeito e inigualável.
Um dever diário como tantos outros. Um dever, para com os outros e para mostrar aos outros, que era nosso como um soldado num contingente de soldados isolado no meio do nada. Chegada a nossa hora, nada mais interessava. Os trocos no bolso para o lanche que acabava esquecido. Os cromos que uns coleccionavam e que outros admiravam. Os primeiros Twain, Stevenson ou Dumas. As raparigas. Sempre as raparigas. As insignificâncias de uma longa e penosa fase que todos atravessamos detestando-nos, detestando os outros e fazendo com que todos os outros nos detestem a nós. A fase em que não fazemos nada de jeito. Mas na qual toda a pequena merda que fazemos parece saída do imaginário de Zaratustra. É a Idade dos Heróis.
Esquecidas as borbulhas e com os primeiros cabelos no fundo do lavatório (choque), a adolescência está agora numa existência passada. Somos todos, homens, guerreiros retornados do outro lado do Mar, tentando esquecer um tempo que preferíamos não ter passado, detestando a «nova e ridícula geração» para a qual olhamos por cima do ombro. E, no entanto, há uma «camaradagem» (palavra perigosa) entre os «combatentes» de uma mesma geração, conscientes da travessia penosa e ingrata que é a adolescência. Mas que, no entanto, nos marca para o tempo de vida que fica por ocupar. O Chico, o Ramos, o Zé, são, hoje, os mesmos que eram antes. Sinal de que, do fundo do nosso repúdio, a puberdade continua a frisar a estupidez que mantemos da «idade proibida». Dos tempos da Lei Seca. Da adolescência.
[João Silva]
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