sábado, maio 28, 2005

A Taça do Vitória

Corria o ano de 1994, no final da temporada de futebol, quando o estádio do Bonfim, anfitrião de um jogo do título, recebia milhares de adeptos de ambos os clubes. Entretanto, à entrada da cidade, acabava de chegar o Sr. Pedro «das Drogarias», fiel adepto do Vitória, quando, por inesperada fatalidade do destino, um carro irrompe de outra estrada e vai bater na sua carrinha, partindo-lhe faróis e quase inutilizando a mercadoria, e o seu negócio. A tragédia, então, abateu-se naquele cruzamento: lembrou-se que, da última vez que decidiu não ir a este jogo (entre estas duas equipas), o seu Vitória descera de divisão, mesmo ganhando. Era uma questão de superstição, e, nesse campo, não gostava de hesitar. Reza, então, a história que o Sr. Pedro, orgulhoso conhecedor dos preços de oficina, avaliou os estragos do «carro adversário» a olho nu e, num gesto de admirável cálculo matemático, cobriu os estragos com dinheiro vivo, beneficiando, então, de um outro rapaz ganancioso e generoso. Foram-se os dois embora nos seus carros quase inutilizados, mas o Sr. Pedro chegou a horas ao estádio. O jogo era o Vitória de Setúbal-Benfica e acabou 5-2 para os da casa. O Vitória acabou em 6º nesse ano. O Sr. Pedro sempre teve razão.

Mas é preciso voltar muito mais atrás para gostar de um Vitória-Benfica. Afinal de contas, foi, precisamente, esse clube que presenteou Setúbal com a primeira Taça de Portugal. Na final da edição de 64/65 da Taça, o Vitória preparou-se para enfrentar o inigualável Benfica de José Augusto, Eusébio e outros. Mas os argumentos deste lado não eram menores: na baliza estava um «senhor» do clube e da cidade, Mourinho (também pai do actual José Mourinho), liderando uma equipa que, para além do excelente plantel, sempre tinha os craques. Primeiro, os «dois» José Maria e Conceição, imigrantes negros que, habituados a outro clima, se passeavam pela cidade, em pleno Verão, de luvas e cachecol. Por fim, não menos importante, o líder Jaime Graça, craque oficial da década de 60 do Vitória (a par de Jacinto João, ou «J.J.»), que, diz a lenda e quem viu, mais tarde, quando foi jogar para o próprio Benfica, ganhou a confiança da equipa e a titularidade ao salvar todos os colegas de morrerem electrocutados nos balneários, por causa de uns fios errantes. As equipas entraram em campo e só saíram quando o resultado estava em 3-1 para o Vitória. A Taça vinha para Setúbal.

E este ano é o mesmo retrato. É uma repetição de um jogo, esperemos que seja a repetição de um resultado. Não é todos os dias que se pode pensar em futebol sem remorsos, e hoje e amanhã torna-se inevitável, a um sócio do Vitória, não ocupar a maior parte do seu pensamento com o jogo. A diferença é que, seja qual for o resultado, não saem animais em fúria, do lado setubalense, do Estádio Nacional em caso de derrota. Para os vitorianos, estar na final da Taça e na UEFA é, por si só, uma orgulhosa prova de que os grandes clubes não acabam. Tal como os grandes jogadores que, ao contrário das «estrelas» da actualidade, nunca perdem o talento, pois, além de grandes jogadores, são pessoas estranhas. E, portanto, pessoas normais.

Dizia-me o meu avô (que já aprendera de um tio) que, quando lhe perguntavam: «só cá para nós, qual dos três grandes clubes prefere?», ele respondia, pensativamente «humm...é o Vitória, claro». É com esta consciência eterna, meio caricata, meio optimista, que as hostes de Setúbal vão apoiar o Vitória na Taça, numa tentativa de repetir a edição de 64/65. E eu, é claro, também.


Mourinho, Vital e Herculano com as Taças de Portugal de 64/65 e 66/67

[João Silva]