Emprestar livros
Exceptuando perdas irrecuperáveis ou desencontros sexuais, emprestar um livro talvez seja o acto mais perturbador da mente de um homem quase sem vida, isto é, sem praia, sem chinelos e sem cartão VIP para o Mussulo. Aliás, na maior parte das vezes, quem requisita um livrinho a biblioteca tão humilde como a minha é, normalmente, alguém que já gastou todo o seu dinheiro, precisamente, em chinelos, óleo bronzeador (segundo alguns, «óleo de coco») e saídas à noite («sair à noite» sempre me evocou a imagem de Jack Nicholson em Wolf). Portanto, visualizando mãos suplicantes, banhadas em creme bronzeador, sebosas de praia e sal, folheando livros importados com o pé-de-meia de um pobre, é natural que me sinta ameaçado quando alguém se aproxima das minhas estantes.
Mas vá-se lá explicar a situação a outra pessoa. Imagino a dificuldade de tentar explicar a alguém que emprestar um livro, é como ter um filho que dorme fora. Todos os outros que ficam em casa são rapidamente olvidados perante a inquietação que é ter o «pequeno» fora de casa. É preciso conhecer como a palma da mão o sujeito que alberga o meu livro/filho na sua casa. É preciso saber onde lê, por onde andam as suas mãos, quanto tempo demora a ler, se se esquece ou não das coisas em sítios inóspitos ou, perigo dos perigos, se é um «jovem poeta» que se senta no chão e faz rodar o livro por dez marmanjos para todos lerem uma passagem (normalmente, um poema lírico que lhes soa a crítica à política externa norte-americana). Livro que «dorme fora» é o primeiro passo para que tal situação se comece a repetir cada vez mais. Indubitavelmente, os efeitos são sempre os mesmos: o sono torna-se mais arrastado quando um livro não está em casa.
[João Silva]
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