quinta-feira, setembro 22, 2005

Fórmula, Repetição

Diz-me, perdido o teu corpo na tarde de chuva,
se é justa a solidão de quem te ama, sem o
dizer, e nesta incerteza te fala. Ou , ainda,
lembra-me se algum dos teus gestos e palavras,
agora que os evoco, um a um, na lenta enumeração
da memória, se dirigiam a esse amor que oculto,
sem que o saibas, para que tivesse de o revelar.
Ó imagem antiga de uma vida que não tive,
ensina-me essas frases subtis que dão fogo
às tardes, mesmo de chuva e de inverno, e
despertam os corpo para a obscura realidade;
e dissipa o fundo encoberto do olhar para
que um céu pálido e luminoso se descubra,
trazendo o canto de uma ave rigorosa
- essa cujo voo sábio dobrou o horizonte
do coração; e, num enxame de áridas emoções,
reconheceu o desejo dos amantes e o brando
furor de um encontro de lábios. Então,
podes esquecer-me, dormir um sono sem asas,
abrigar os seios de uma ânsia de raízes.
Porém - por que não dizes nada? e me deixas
sem nada saber de ti, ausente, na sombra do poente.

Nuno Júdice, Enumeração de Sombras

[Paulo Ferreira]