Um poema
Passados anos desde o meu primeiro contacto com um poema, sinto-me com legitimidade suficiente para afirmar que esse primeiro contacto foi o que mais me marcou. Possivelmente, as primeiras imprecações amorosas da vida adolescente serão aquelas que mais marcam a vida sentimental de um indivíduo. Tanto mais que, agora, quando leio poesia, tento sempre procurar aqueles primeiros versos inexoráveis da minha adolescência nos versos que se encontram à frente do meu olhar. Quando releio o poema, o meu primeiro poema, encontro, com efeito, várias das imagens que me acompanharam durante alguns dos anos que gastei na inconsciente vida de criança. Assim, encontro: uma fotografia da jovem amada (era uma paixão fatal, daquelas que matam); uma parede com dois nomes riscados a marcador, que simbolizavam o feitiço encantatório da loucura, um autocarro; uma janela (ainda hoje fechada, por sinal); um perfume; um casaco de Inverno azul; uns caracóis aprumados, típicos de jovem adolescente que se preze. Enfim, encontro um passado que, embora não tenha sido muito dignificante para a minha pessoa, deixou saudades. Encontro o passado, na terceira pessoa. É por me transportarem tantas vezes para o passado que aqueles primeiros versos da minha vida serão sempre os primeiros e, quiçá, os últimos.
Um amor
Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados.
Depois, na rua, ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.
- Nuno Júdice, A Partilha dos Mitos
[Paulo Ferreira]
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