quinta-feira, dezembro 01, 2005

Tristesse I

Há tempos, numa entrevista, uma inexpugnável representante da mentalidade popular (sob a forma de «entrevistadora») perguntava, num jornal qualquer, a Pedro Paixão: «porque é tão infeliz se ganha bem e tem uma boa vida, um bom emprego?». Para a jornalista, a pergunta já trazia a resposta. Era uma pergunta do género daquelas que apenas querem dizer «nem-acredito-nem-me-interessa-vou-só-perguntar-para-ver-o-que-este-parvo-responde». Pedro Paixão era, para ela, uma crua representação do escritor que «se faz triste». A jornalista era, para mim, uma crua representação da felicidade eterna: Deus não salva, o «homem tem de se salvar a si mesmo, ser feliz todos os dias».

Eu diria que a divisão entre as mentes hiperactivas e as mentes que se julga «cinzentas» é muito ténue. Um homem não é triste porque não consegue o que quer. Um homem não é «desiludido» porque teve desilusões, porque uma mulher se foi embora e não voltou, porque o pai ou a mãe lhe batiam ou se batiam. Se tudo fosse assim tão simples, não valia a pena esperar por bons escritores e boas obras. Estariam em todo o lado: todo o homem despedido de um emprego escreveria um Crime e Castigo brilhante, todo o namorado traído produziria um Werther, provavelmente até Bryan Adams, pobre diabo da música ligeira, debitaria imensos volumes da poesia mais lírica e desiludida, odes ao profano verão de 1969.

A jornalista, ao perguntar a Paixão porque razão não atinge a Felicidade, se tem um «um bom emprego», uma «boa vida», deitou por terra quilómetros de biblioteca, rasteirou as pernas de todo o homem ou mulher que vê o mundo, não voluntariamente triste para a fotografia, mas de olhos semi-cerrados, simplesmente cansados, nada mais. Perde-se a vivacidade, odeia-se a vida, perde-se a réstia de optimismo pela raça humana, mas não se corre para um penhasco nem, necessariamente, se junta a uma brigada revolucionária. Nem a vida perde «interesse», mas sim apenas «razão de ser». Mesmo as histórias tristes dos homens têm interesse, se não forem as únicas que têm.

Tenho quase a certeza que Celan não hesitou, antes da sua morte: «e se a minha vida, afinal, for realmente boa?». Não, muito longe disso - tristeza é, apenas, cansaço. O grande cansaço.

[João Silva]