domingo, setembro 12, 2004

O homem não-homem

Já lá vai o tempo em que um homem tinha, apenas, de cavalgar umas quantas vezes, matar uns quantos mouros, sobreviver a um duelo, fazer uns dinheiros ou cair nas boas graças dos sogros para «agarrar» a mulher que queria. De entre muitas hipóteses que eram alheias à escolha e às preferências da mulher (a jovem, habitualmente e de preferência), o homem apenas tinha de escolher uma. Mas, a mais importante das características desse galanteio, que baqueou algures no séc. XIX, e deu sumiço algures no séc. XX, é a ausência de relação com a arte. O homem em questão poderia ser o mais abrutalhado das hostes que se reuniam, esperançadas, à porta da donzela, mas, se abrisse a cabeça de um indígena à machadada ou, mais actual, se abrisse o peito de outro cavalheiro em duelo de pistolas, tinha a vida feita. Se vivêssemos no séc. XIX, poderíamos ver os banqueiros gordos passear as beldades nas avenidas. Actualmente, apesar do dinheiro ainda comprar companheiras, essas relações já se tornam raras e problemáticas. Antes, o amor pelo rico, pelo bruto, pelo gordo, pelo feio, era sincero. Não sei se seria melhor, mas decerto pouparia certos esforços a que os homens têm sido, ao longo do século, sujeitos para chegar à mulher que querem, provas de não-virilidade que estão para o machismo como Estaline estava para Hitler. Hoje em dia, no entanto, o homem, a beleza e a arte juntaram-se num só ponto no imaginário da mulher. O homem tornou-se reflexo da arte. Tudo o que as mulheres querem ver é o reflexo de quadros, a reposição de filmes e o eco de canções (românticas ou anti-românticas, note-se) em cada um de nós.

O homem deixou de ser o manipulador bruto (podia ter sido alguém) para ser o manipulado artístico. Hoje, o homem é arte. Obrigatoriamente. Elas não se inibem nem se juntam numa grande comunidade feminina (as feministas da «defesa da Mulher» deixaram de ser mulheres há algum tempo), cada uma, cada qual com a sua visão pessoal de arte e, consequentemente, de beleza. Felizmente, os gostos são variados. Talvez o gosto básico de quase todas as mulheres, aquele para o qual despontam na adolescência, é o «homem Turner», a paisagem brilhante, magnânime, fruto de anos de trabalho e de toques e retoquezinhos, impossível de passar despercebido às meninas. No fundo, todas admiram Turner, a não ser que se prefira a anti-arte. Na verdade, não há mais nada para além do que lá está. É por isso que muitas começam cedo a admirar, preferencialmente, o «homem van Gogh», o «génio» (a genialidade é facultativa) misterioso que se recusa a falar com pessoas, nem com mulheres. À base do mau génio, no entanto, consegue, não a que quer, mas a que os outros querem. Geralmente, quem não gosta muito dele são os «Warhols», os meninos irreverentes progressistas, cujo sovaco mal-cheiroso, ideias novas e cabelo revolto mostram um fundo intelectual não demonstrado, tímido (ou seja, inexistente). Mas claro que quem passa a conhecer de perto a maturidade de alguém mais velho, de um «Picasso» (promíscuo e insinuante) ou de um «Hopper» (elegante, inteligente e experiente), não tão cedo voltará ao convívio dos demais seres jovens e mortais. Felizmente para o resto de nós, há sempre espaço para apreciar um «Rothko» (atenção, não confundir com roto). É simples e inteligente e, embora passe ao esquecimento ou à indiferença em pouco tempo, tem o benefício de nunca chegar a irritar ninguém. O tédio é o custo.

No entanto, não é preciso ser artístico, ou ser arte, para ser alguém. O acaso também tem, aqui, uma influência subvalorizada. Os filmes já estão feitos, portanto depende de cada um estar no sítio certo à hora certa. Felizmente para os menos agraciados com a suprema beleza humanista, há sempre a esperança do momento cinemático (eu nem a esperança tenho). Chegar quando a donzela está em perigo ou está em baixo ajuda muito (confesso que tenho, também, uma merda de timing). Muita gente poderá confirmar a eficácia dessa hipótese, se necessário. O «momento Casablanca» é, sem dúvida, o mais famoso e o mais repetido. Ainda assim, como crianças, caem sempre na mesma fraude.

Não há conselhos a dar, nem ninguém que os dê (desconfiem dos burlões que os dão), os padrões artísticos já foram definidos há muito, e a cultura do «homem manda-chuva» morreu há muito. Ainda Luís XVI era um só, já o homem se apercebia que o mundo ia mudar. Não era a mulher que estava mal, era o homem que estava exagerado, que punha demasiado ênfase nas suas qualidades. Hoje em dia, não temos qualidades novas, somos apenas a sua repetição, a repetição do que já foi escrito, feito e realizado. Não escolhemos nada, a nossa única possibilidade de escolha vem do desnivelamento demográfico que nos põe em defeito e em menor número. Deixámos de precisar de provar alguma coisa, ou mesmo de poder fazê-lo. Temos apenas de ser a pessoa certa, no sítio certo, no momento certo. O resto é automático. Somos apenas o homem na tela. Pior, o homem na montra. O quer que sejamos, uma nova entidade estabeleceu-se: o homem não-homem.

[João Silva]