quinta-feira, setembro 02, 2004

O Inferno na Terra



"Conhecemos o vazio neutro dos céus e o seu terror. Mas talvez a perda do Inferno tenha sido mais devastadora ainda. Talvez a transformação do Inferno em pura metáfora tenha deixado uma lacuna formidável nas coordenadas do reconhecimento espacial e psicológico do espírito do Ocidente. A ausência dos condenados familiares escavou um vórtice que o Estado totalitário contemporâneo terá vindo preencher. Não termos nem Paraíso nem Inferno é ficarmos intoleravelmente despojados e sós num mundo sem espessura. Dos dois reinos perdidos, verificou-se que era o Inferno o mais fácil de recriar. (As suas descrições tinham desde sempre sido mais precisas).
Na nossa barbárie actual encontra-se em actividade uma teologia extinta, um corpo de referência transcendente cuja morte lenta, incompleta, deu lugar a formas e sucedâneos paroxísticos. O epílogo da crença, a transformação da fé religiosa em convenção oca, parece ser um processo mais perigoso do que os philosophes tinham previsto. As formas de degradação são tóxicas. Em busca do Inferno, aprendemos a construí-lo e a fazê-lo existir na Terra. A poucos quilómetros da Veimar de Goethe - ou nas ilhas da Grécia. Não há outra capacidade humana portadora de maior ameaça. E porque a possuímos e a usamos sobre nós próprios, vivemos hoje uma pós-cultura. Tendo colocado o Inferno à face da terra, abandonámos a ordem suprema e as simetrias fundamentais da civilização ocidental."


Gerorge Steiner, No Castelo do Barba Azul

[Paulo Ferreira]