Sol campestre
Pedro era feliz, no seu mundo constante e previsível. Este automatismo fazia-o dono dos acontecimentos, do destino e, mais importante, das suas emoções. O noivado tradicional parecia desenhar-se na sua vida para os tempos que se seguiam, sem ele muito contribuir para tal, mas também sem demasiado queixume da sua parte. Como disse, Pedro era feliz com aquilo a que se chama «a ordem das coisas».
Como um Sol campestre, esta existência harmoniosa era o suficiente para aquecer os seus dias. Raras eram as vezes em que lhe era concedido um olhar sobre qualquer coisa diferente. Nem ele o queria, receando um desventurado desvio do trilho habitual e uma rendição à volúpia. No entanto, em Dezembro, um dia houve em que decidiu abandonar o cadeirão familiar para ver o Mundo. Saiu de casa sozinho, deambulou pelas ruas submersas em neve, e entrou num bar ao fim da tarde. Aí entregou-se ao álcool e ao desvario. Sentiu-se diferente, sem o compreender muito bem. Conheceu Madalena, cantora, após ter ficado enredado na sua voz lancinante mas tranquilizadora.
O primeiro passo para esquecer quem era fora aí dado. Não compreendia o que se passava. Passou a encontrar-se com Madalena, todos os dias. Duas semanas depois, saiu de casa, e não voltou. Um novo mundo parecia abrir-se na sua frente. A vida com Madalena parecia ideal, e via toda uma nova existência agora. Até que esta se cansou dele e partiu para Paris, seguindo uma nova carreira e um novo amor. Pedro ficou sozinho, sem ter percebido muito bem o que se passou. Sentiu que a terra se abria agora debaixo dos seus pés. Sentia-se enganado pelo Mundo. Estranhamente, assim que voltou a si, estava novamente em casa, no cadeirão, junto à sua noiva, junto à lareira quente. A «ordem das coisas» parecia não ter sido corrompida. O Sol continuava na janela.
Alguns meses depois, Pedro caminhava pelas ruas sozinho quando ouviu uma voz familiar vinda de um clube. Uma certa curiosidade o guiou até à porta de entrada, de onde conseguiu ver Madalena cantando. Esta não o viu. Pedro hesitou, mas, por fim, decidiu-se e voltou a sair, em direcção ao destino habitual. Não se desviou do caminho. E nunca voltou a ver Madalena. O poder de escolha fê-lo sentir-se bem. O saber que existia outro caminho. A sua recordação, a sua memória de Madalena era o suficiente para sobreviver.
[João Silva]
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