sábado, outubro 30, 2004

Anti-herói: antítese do «bom selvagem»



A especificidade de Travis Bickle (Taxi Driver, 1976) no seio da sociedade americana não é, apenas, um marco do cinema. É um marco da aparição do Homem a si mesmo. Para os mais novos (como eu), é a primeira vez que nos vemos ao espelho como Homem. Como Ser tendencialmente racional, mas impregnado de raiva, ódio, vergonha, inveja e de um profundo desalento perante a própria solidão no Mundo. Bickle, como uma personagem dostoievskiana, constata a sua solidão a cada momento de humilhação na sua vida. O eterno falhanço, o erro, a loucura, a irracionalidade inconsciente são parte importante do seu devir existencial. Daí ao sentir-se «sozinho no Mundo», acusado pela sociedade, é um pequeno passo. Porque a sociedade realmente quer acusá-lo de algo, ao longo de pequenas recusas, pequenas humilhações.

É, precisamente, por ser um falhado consciente, que se torna um herói. A sua raiva e baixa auto-estima, contrastando com as brilhantes luzes da cidade à noite, com o movimento constante, com os grupos de amigos e foliões bebendo e cantando, é a perfeita constatação do «homem que pára para pensar na sua inapelável e inevitável solidão». A personagem principal de Notes from underground, de Dostoiévski, encarna a mesma situação. A auto-humilhação, a baixeza das suas acções e pensamentos, paralela à tão comum vontade de realização, separam-no de todo um mundo de festa, felicidade e continuidade. O mundo dos idealizados «amigos da folia». Estes, ao tenderem a repeli-lo ou a enfiá-lo numa camisa-de-forças, estão a recusar a própria natureza: a inveja do que está por cima.

Travis Bickle é um homem louco e com maus instintos face a um Mundo igualmente mau e repleto de mais maus instintos. Entre eles está uma ténue linha de generosidade que passa imperceptível aos olhos de Bickle. Depois disso, dá-se o desencontro entre os dois, e o conflito. Mas a diferença entre ele e o ser vulgar reside na capacidade de conflito dentro de si mesmo. O eco de um incessante clamor de espadas dentro da sua cabeça, uma luta entre o caminho do Bem e o caminho do Mal, que, no fim, se transforma numa forma de fazer o que acha «correcto», mas da forma «incorrecta» (o Bem através do Mal). Em Notes… o mesmo se passa. O livro começa com uma reflexão que todos nós, de manhã, poderíamos, num dia cinzento, fazer ao espelho: Sou um homem doente… Sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou. Dostoiévski não tinha ilusões. Eu também não.

[João Silva]