Escrita sem censura
A escrita é, talvez, o maior desafio que se põe às capacidades mentais e criativas de cada um. Não é um teste ao que se sabe ou ao que se pensa saber, mas uma porta, um veículo secundário a uma boa ideia. E a disposição que se tem, no quotidiano, muito influencia a disposição que se terá frente a um bloco, um teclado ou uma máquina de escrever. Ou seja, geralmente, quem pouco sabe muito quer dizer, e quem muito sabe quer guardar certas coisas para registos e alturas diferentes. Como dizia alguém num serão de whisky, «não se deve tentar tocar muitas notas acima do que está na pauta, pois quando isso acontece, desafina». Num contexto diferente e mais digno, seria uma fase fadada para a posteridade.
E, por falar em whisky, lembra-me outra advertência, mais antiga até. Nelson Rodrigues, por diversas vezes, preferia dizer «bêbado», no lugar de «bêbedo», para dar ênfase a uma personagem ou a uma situação. Imagine-se uma dona-de-casa, residente nos Anjos, ser surpreendida em casa, a altas horas da manhã, por um marido corado e cambaleante e dizer-lhe: «Ai Américo, que voltaste às bebedeiras! Seu bêbedo!». Se não se lhe chamar bêbado (com a) nesta situação, perde-se uma excelente (mas certamente repetível) oportunidade para realçar o ridículo e insultar com ternura outra pessoa. Chamar bêbado a alguém naquelas condições é ajudar à reabilitação de um amigo.
Um passo importante na forma como se escreve é, não só a escrita, mas a «transcrição» do que se diz. Ou melhor, do que as pessoas realmente dizem. Em situações contemporâneas, não se diz muitas vezes «bolas», já não se diz «raios», e aviso veementemente que as personagens castiças não falam, nem nunca falaram, docemente com ninguém, excepto em casa com a intimidade da «patroa». Alguém que pense em insultar um homem publicamente deve excluir os adjectivos normais da Assembleia da República (dos nossos tempos, repare-se) e, sobretudo, termos de Direito Internacional.
Faz-me lembrar um amigo temporariamente guionista que, em tempos, resolveu pôr na boca de um pescador: «s'macaba a água da turneira, passome dos carretos e parto te tôdo pá!!!!!». Realçando a linguagem que, afinal, até era a sua, e acrescentando os pontos de exclamação extra, tinha nas mãos uma obra-prima do neo-realismo, passado nas ruas e nas docas. Mesmo por não saber falar de outra forma, e por isso mesmo fazer personagens sensivelmente à sua imagem, deu por si a escrever um dos mais criativos guiões que já li, sem olhar a estilo e convenções, ao melhor estilo de Luciano e Petrónio. Guião infelizmente à deriva, mas até quando?
[João Silva]
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