quarta-feira, maio 11, 2005

A voz que foi futebol

Por vezes esquecemo-nos do que é o futebol. Ou melhor, esquecemo-nos da razão que leva a que o futebol seja o desporto mais atraente, e até saudavelmente doentio, para o português e para todos os que estão genealogicamente próximos de nós. O futebol é tudo o que lhe dá a ênfase extra. Basta comparar o célebre «Barbas» do Benfica ou «a Peixeira» do Vitória de Setúbal à estática plateia bocejante e cristalina de um Estoril Open. Basta comparar os melhores serviços de Pete Sampras ou as melhores tacadas de Tiger Woods com o dribble mirabolante e, ao mesmo tempo, genial e objectivo de Maradona. Por fim, basta comparar os comentários de um jogo de basquetebol (exceptuando aqui o familiar duo de comentadores, que animou parte da minha adolescência, com Carlos Barroca) com os comentários de Jorge Perestrelo, recentemente falecido.

Há quem não goste de Jorge Perestrelo, e é fácil perceber porquê. Não tem o conhecimento do futebol e a classe de Gabriel Alves, nem a longa e respeitável carreira do lacónico Rui Tovar. É mais um género de «Jerry Springer do futebol», fazendo-nos ver trapalhões em nulidades, fazendo-nos imaginar magos em simples jogadores de futebol. Na verdade, a sua junção com a SIC para comentar jogos acabou por ser óbvia e natural, uma identificação de estilos comuns: extravagância e adjectivação exageradas.

Mas, se pensarmos duas vezes, o que é o amor pelo futebol senão um exagero? O que é o clubismo senão uma bonita extravagância tornada vício ou teimosia? Talvez a primeira coisa que me lembro quando penso em Perestrelo, ou a segunda (a primeira é a inevitável «rapaqueca»), é o seu comentário de um antigo jogo de futebol: o inaugural Brasil-Checoslováquia do Mundial de 1970. Vendo jogar a melhor selecção de sempre, o Brasil'70, Perestrelo diz de Jairzinho: «Pega a bola ali e é só Jairzinho. Um. Dois. Três adversários». Mais à frente, num jogo que passou de 0-1 para a Checoslováquia para uma sonante vitória brasileira de 4-1, Perestrelo abranda o tempo e o discurso para falar do lendário remate de Pelé do meio-campo, que passou a centímetros do poste do gurada-redes checo: «Pelé recebe no meio-campo e faz isto... [a bola passa ao lado da baliza] Não foi golo, mas foi espectáculo!».

Há que tirar o chapéu a um estilo que era inédito em Portugal, tão habituados que estamos aos falsos eruditos do comentário de futebol. Nem todos gostávamos, e eu também não era um fã, de Perestrelo, mas ele fazia o que gostava e tentava fazer com que gostássemos também. Sem pensar em árbitros e presidentes.
A extravagância não é nova, o ex-seleccionador brasileiro João Saldanha disse uma vez acerca de Pelé: «Perguntem-me quem é o melhor lateral-direito do Brasil e eu responderei Pelé. Perguntei-me sobre o melhor defesa-esquerdo ou o melhor centro-campista, ou o melhor avançado-centro. Sempre terei de responder Pelé. Se ele quiser ser o melhor guarda-redes, é o que ele será. Só há um Pelé».

Se me disserem que Jorge Perestrelo não trouxe classe aos comentários de futebol, concordarei. Se me disseram que não era nada de «especial», não duvido. Mas se disserem que não trouxe nada de novo, é mentira. Perestrelo trouxe um estilo novo e uma linguagem nova, despretensiosa e, por vezes, irritante, mas nem por isso vazia. Há que se-lhe tirar o chapéu. Se acharem este elogio exagerado e extravagante, estão no vosso direito, mas sem esse exagero o futebol morre, ou torna-se um cinzento teatro com 22 actores e uma bola. Perestrelo nunca viu o futebol de outra forma e, por isso, vai fazer falta.



[João Silva]