Livros e educação
O Paulo respondeu ao meu comentário sobre o lançamento de um best-seller qualquer para crianças, isto é, que eu atribuo a um público mais infantil, mas com que a autora supostamente tenta subjugar a inteligência universal, como o Paulo bem indica. A sua opinião parece-me clara, como já foi revelada noutro post, ou, pelo menos, o seu «sentimento»: uma angústia perante a mediocridade reinante. Mas, uma vez mais, digo que Harry Potter deverá ser um livro infantil que, ocasionalmente, apele a adultos sem mais nada para fazer, a «ignorantes» (pela definição de um indivíduo que desconhece, que ignora que há coisas bem mais importantes, e abundantes, para ler). Mas será apenas para crianças? Aí reside um primeiro «problema»: a tentativa, de Rowling e editoras, de o caracterizar como um livro «educativo», rico no que quer que seja.
Visto que ambos concordamos com a liberdade de ensino (talvez um mais, outro menos) nas escolas, no sistema educativo, na medida em que se concorda que a via pluralista é a mais indicada (ainda que, inevitavelmente, sujeita a algumas injustiças face à desigualdade que acabaria por acontecer na qualidade do ensino) para educar as crianças, também o mesmo se deverá passar quanto à «educação familiar», que hoje deixa muito a desejar. Mas há outra liberdade que sempre prezei: a liberdade de «ser burro». Isto é, numa democracia liberal idealizada (com o ênfase no «liberal» e nunca perfeita) será sempre relativamente fácil e útil identificar os mais ignorantes e os mais letrados, sendo que os iletrados não são necessariamente menos importantes nem menos «capacitados» para funções públicas, administrativas, judiciais e políticas. Uma antítese extrema reside na forma escarnecedora ou desconfiada como os pensadores são vistos e na aclamação dos «grandes líderes políticos actuais», célebres iletrados. Por muito que me incomode, acho que é perfeitamente natural e louvável que assim seja, que haja essa diferença (não se pense numa linha bem demarcada socialmente mas sim em algo bem mais individual), ainda que seja triste a forma de projecção individual para cargos públicos e governativos dos dias que correm, onde «vence» quem pega na bandeira e grita mais alto.
Caso não se respeite a desigualdade natural de desenvolvimento, aprendizagem e «crescimento intelectual», que vem dos tempos em que começou a educação do primeiro homem, é bem possível que se seja seduzido, parcial e subtilmente, pela assustadora lógica da engenharia de almas bem conhecida dos regimes (dos mais diversos quadrantes e origens políticas) que singraram na Europa, Sudeste Asiático e Pacífico entre 1920's e 1980's. Refiero-me a «engenharia de almas» descartando a chamada «engenharia social» visto que, ao querer impingir hábitos de leitura a crianças que procuram o livro pelo Harry Potter, e não o Harry Potter pelo livro, teria de se ultrapassar os mecanismos sociais para entrar no campo individual. Seria bem mais cívico, da parte dos mais velhos (não vejo outra forma de «cidadania», palavra delicada, senão a que parte dos mais velhos), educar as crianças em Dickens, Twain ou outros, visto que duvido que leituras obrigatórias de Henry Miller ou Burroughs não seriam bem aceites, mas isto é só uma projecção. De uma forma ou de outra, a primeira educação vem da transmissão do conhecimento e exemplo «de cima para baixo».
Na verdade, como grande adepto das liberdades individuais, uma das que mais prezo é aquela que muita influência vai buscar aos empiristas: a liberdade de experiências e, consequentemente, a desigualdade das mesmas. A partir daí, cada um constrói (na sua pessoa e pela dos pais/encarregados de educação) a sua via e campo de aprendizagem, segundo formas socialmente estabelecidas. Haverão, pois, os que desenvolvem um ávido gosto pela leitura e conhecimento, outros mais pontualmente, e ainda outros que não desenvolvem nada. Mas, finalizo, está no seu direito. Chama-me negligente Paulo, mas a verdade é que temos apenas de assistir optimistas, confiantes numa futura mudança de mentalidades em geral, enquanto uma grande parte de jovens adultos, e de outros menos jovens, cai na trapaça da mediocridade dos best-sellers, preferindo-os a livros no mínimo razoáveis. Afinal, não saber nada do Mundo faz parte das liberdades naturais dos homens.
[João Silva]
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