sábado, agosto 06, 2005

Sobre livros

«O livro foi uma das principais vítimas desta nova escola. Todo o sistema educativo parece hoje concebido para reduzir ao mínimo a consulta do livro. Pela profusão de imagens e de fórmulas coloridas, os próprios manuais escolares fazem um esforço para se parecer menos com livros; e, pela arte das citações simplificadas e simplistas, para os substituir. Elogiam-se os métodos de ensino que dispensam o livro, das brincadeiras aos passeios, dos trabalhos de grupo aos projectos, sem falar nos resumos fotocopiados. Apresenta-se o computador como um sucedâneo do livro. Isenta-se qualquer aluno da leitura morosa e concentrada. Chega a lançar-se o anátema contra os trabalhos de casa, de que a leitura de livros faz parte essencial. Depois de se ter considerado, justamente, que a posse de livros e a existência de bibliotecas em casa da família eram traços de desigualdade, quase se concluiu que um ensino sem livros era a melhor maneira de combater essa desigualdade! Fez-se do livro um objecto arqueológico de atávicas reminiscências, a fazer pensar no pior de uma organização opressiva e repressiva.
(…)
Acontece que uma escola sem livros, que admito perfeitamente poder existir, é uma escola desumana e de desprezo pelo património cultural e científico da humanidade. É uma escola que, a pretexto de igualdade social, provoca mais desigualdade, pois que faz do livro um bem de casta e um hábito de elite. E é sobretudo uma escola que, a pretexto do combate contra a «cultura livresca», legitima esta detestável forma de ignorância (…).»


António Barreto, Tempo de Incerteza



«(…) Quando lhes perguntam, o que vais fazer com tanto tempo livre nas férias?, os portugueses mentem. Mentem com quantos dentes têm na boca. E dizem que vão ler. Que vão ler aquilo, aquelas coisas, o Homero traduzido em português dans le texte e misturado com a areia da praia, o Dan Brown em inglês dans le texte caído no bordo salpicado de cloro da piscina, e quiçá um pesado romance do século XIX, que andam para «reler» (outra mentira, mais fina, é a dos que deixaram de ler, apenas relêem) há anos, que pesa pelo menos 489 gramas e que eles tentarão equilibrar numa mão, enquanto seguram o toldo do vento e a trela do cão na outra. Mentem e continuam a mentir, faz parte do sistema, está-lhes, como dizia o povo, na massa do sangue. Porque, se os portugueses lessem tanto como mentem, éramos o povo mais culto, mais letrado, mais lido e relido da Europa, quiçá do mundo inteiro, e não somos. Não somos não.»


Clara Ferreira Alves, Única, 30 de Julho de 2005