Carta de ruptura por excesso de desejo
Os dedos que tocam os teus lábios, selando a última
frase que o amor exprime, tornaram-se frios com a queda
da noite e um vago início de inverno. Tu ouviste as
palavras do inventor de versos, descobrindo a linguagem
a um olhar apressado; e não soubeste responder-lhe
nessa fronteira entre mundos idênticos, nem trazias
a resposta a uma inquietação antiga de que só os
deuses conheceram o nome. O retrato fixou esse gesto
sem resposta na imobilidade do tempo, e trouxe-o
até mim para que, devagar, te responda numa hesitação
de estrofe: «Amo-te! A quem o horizonte ocultou algum
dos enigmas de que as aves feridas indicam a solução;
e um músico louco dedicou as últimas páginas brancas.»
Então, esse inverno desfez-se nos bolsos em que procurei
a eternidade; os limites romperam-se naquele sonho de que
só recuperei a tua imagem. Nada do que iria acontecer
ficou previsto no silêncio que me deste – para que o
transformasse num ritmo poético – e que guardei numa
gaveta do acaso. Nem o astro ocasional da madrugada
permitiu que se lesse o texto de uma despedida que a
memória tornou breve como a estadia das folhas no fim
do outono. A melancolia corrompe essa vida efémera; e
a chuva limpa os campos que a névoa amortalhou. Digo-te
que nada disto é tão real como o teu rosto esquecido.
Nuno Júdice, As Regras da Perspectiva
[Paulo Ferreira]
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