sexta-feira, setembro 23, 2005

Sinais de Fogo

Jorge de Sena é dono de uma capacidade de escrita fora do normal. Essa característica é algo que está vulneravelmente exposto no seu Sinais de Fogo, romance póstumo publicado um ano após a sua morte. Obra de uma vida, literalmente.
O «Jorge» de Sinais de Fogo poderia até conter alguns traços autobiográficos, tal é a força interior que o enche de dinâmica nas relações com outras personagens, mas esse fogo narrativo que incendeia tudo à sua passagem (ou é incendiado pela própria passagem, que me parece mais adequado) parte da personalidade específica do autor, não de uma caricatura exagerada do homem central do romance, e muito menos de uma «necessidade» premente que contar histórias de vida.

Não, Sinais de Fogo evoca, sobretudo, uma realidade: Jorge de Sena é um poeta dentro do romancista, e a sua obra enuncia-o, sobretudo, nos momentos em que o homem se abandona à terra, ao que o rodeia: «Quando fiquei junto delas, que menos pareciam cravar-se na areia que nascerem da praia (o que era como que indicado pela delicadeza de sutura entre a areia molhada e elas, marcada por um fio de água rente), os meus olhos não queriam reconhecer, no que viam, dois barcos de ferro, encalhados e desmantelados, reclinados um contra o outro». Mas Sena poeta está ainda mais presente nas deambulações mentais que trazem um vago chamamento de um outro mundo, onírico e surreal, cuja força não é comum nos romances vulgares: «Umas palavras indistintas perpassava, lentas, combinando-se e descombinando-se na minha cabeça. Recostando-me na cama, senti um sorridente prazer em deixá-las fugir, dissolverem-se hesitantemente, com recorrências murmuradas como as crespas vibrações e contra-vibrações à superfície de uma água escura e quieta que se imobiliza oleosamente num espelho tranquilo».

Mas não há só lugar para a solidão de «Jorge». O mundo de Sinais de Fogo - uma Figueira da Foz evocando a imundície humana de outros tempos e de outros hábitos morais (ou falta deles) - está cheio de pessoas que povoam o rumo (dir-se-ia errante) da personagem principal. Desde os tios da Figueira aos amigos da adolescência e da juventude, passando pela inevitável ligação a uma mulher especial, Mercedes («A minha posse de Mercedes era a tranquilidade, a saciedade. Um desejo que desejava mais que o desejo») e a outras hostis (Almeida) ou psicologicamente complexas e imprevisíveis (Rodrigues). Havendo ainda espaço para outras mais ridicularizadas (Rufininho, entregue a uma pederastia voluntária) ou caricaturadas, como a sua própria mãe, dona-de-casa fechada na «casa» que é o regime póstumo («Olha, sabes que mais? Quem manda manda. O governo lá tem as suas razões. Oh, que horror... Tinham a bordo exemplares, diz aqui, do Marinheiro Vermelho. Que horror»).

Por outro lado, ainda há espaço para um pequeno inventariado orgiástico de costumes e casas de má fama de outros tempos, para além do esqueleto verbal que sustenta a «vida»: «Quase me deu vontade de rir aquela consciência profissional, mas respondi: - Pago-te o tempo perdido, tanto faz. - Tanto faz? Eu não sou um táxi, não vivo de tempo, eu vivo disto... - e arreganhava o sexo com as mãos». Enfim, numa naturalidade comovente, algures no romance um homem (um estranho) resume parte da aceitação do ser humano às ofertas da terra, uma cumplicidade masculina a fazer lembrar as amizades rápidas da infância: «O condutor pendurou-se amigavelmente da plataforma: - Vão mesmo às putas? E eu que ainda tenho mais três horas de serviço...».
Um excelente romance. Uma obra clássica.

[João Silva]