A China de Mao
Para alguns, é sabida a minha recusa do revisionismo histórico, seja de que tipo for. Na verdade, qualquer tipo de tentativa de «esquecimento voluntário» (tão típico dos paraísos da utopia do Sudeste Asiático) normalmente não é mais que um indício de desgraça iminente. O constante diálogo entre os objectivos do presente e os falhanços do passado é apanágio das sociedades, e mentalidades, mais sensatas. Os alemães, na sua imensa vergonha enquanto descendentes de um povo que fechou os olhos às piores acções de Hitler, construíram um espectro político confuso e «centrista» que, por sua vez, se prendeu, quase como «estatuto», à imagem que temos da UE. Os russos, com Estaline, rapidamente entraram em progressivos processos de revisionismo oportunista, sem grande convicção, sempre, no entanto, comandados pelo jugo de um partido cujos tentáculos não se limitam ao reduto soviético. Os chineses, com Mao, parecem, no entanto, não ter conseguido encontrar uma saída mais convicta para um legado tão omnipresente que, não obstante a vontade das pessoas, se foi conservando negligentemente.
Na China, não é uma questão de «necessidade excepcional de revisionismo», mas sim de encarar o passado com realismo e interrogação. O «Grande Timoneiro» está sempre presente, seja naquilo que «fez», a que deu origem - como o Estado socialista que baseia a actual China -, seja naquilo que destruiu - o que, contando com o onanista imperialismo de Mao Tsé-tung, é bastante.
O professor Sin-ming Shaw, professor convidado em Columbia, diz (num artigo do último sábado no DN), acerca da presença de Mao na China contemporânea: «A manutenção do falso rótulo do comunismo enquanto se ressuscita o capitalismo e a insistência em que Mao, apesar de todos os seus erros e crimes, estava 70% "correcto" é a pedra basilar da corrupção moral que afecta a China actual. É como se os nazis estivessem ainda no poder, com os líderes actuais a afirmarem que Hitler estava apenas 30% errado. A China merece melhor; exige melhor, de forma a poder reafirmar a glória que já teve».
Ora, no caso da China, e com a presença sombria de Mao em todos os recantos políticos, jurídicos, sociais ou mesmo comerciais ou religiosos (ou melhor, «não-religiosos», atendendo ao enorme silêncio que ficou aquando da destruição de todos os templos e resquícios de religião), é preciso um processo diferente do de revisionismo para melhor compreender o que ficou para trás ao mesmo tempo que se respeita, isto para não chocar os ainda devotos, tudo o que sustentou Mao e os devaneios utópicos do seu Partido: ou seja, o povo chinês. Quando se compreender o que Mao fez, tal como se compreendeu (e interpretou humanamente, não politicamente) o que Estaline e Hitler fizeram na Europa e na União Soviética, a China torna-se, na sua totalidade, um aliado de grande respeito e confiança. Enquanto se pesar Mao na balança do «caminho para o Éden» (ou do «caminho para a servidão», como Hayek interpretaria), a China continua, sem dúvida, a ser «a China do Grande Timoneiro».
[João Silva]
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