sexta-feira, dezembro 30, 2005

Noé dos tempos modernos

Piet era um asno. Mas não é aí que eu quero chegar. Piet fazia, isso sim, do fim do ano uma chegada triunfal ao fim do mundo. A contagem decrescente para o dia 31 começava bem mais cedo do que para as outras pessoas. Na verdade, Piet, embora não acreditasse no fim do mundo, via-se na inexplicável obrigação de reunir toda a gente que conhecia - minto, toda a gente que pudesse, mesmo que os não conhecesse - no maior salão que encontrasse. Sentia-se uma espécie de Noé dos tempos modernos. Pelo menos, nos tempos modernos, todos o louvavam pela sua acção de caridade anual. No momento da passagem de ano, acontecia sempre o mesmo: contavam de dez para zero; alguém rebentava algo; e todos se mexiam o mais que pudessem. «O movimento é lei! Consegui», gritava Piet de copo na mão. Fechava os olhos e entregava o corpo ao fim do mundo. E, sem falhar, todos os anos, alguém lhe batia no ombro e dizia: «Piet, conseguiste outra vez! O movimento é lei». Piet não acreditava em Deus, mas sempre encarava isto como um sinal divino. Talvez por isso acabasse sempre a noite nu, no meio da pista de dança, como Adão.

[João Silva]