A infantaria vermelha
A mítica «imagem» dos comunistas como pessoas que, no Alentejo, faziam desaparecer as crianças (supostamente, comiam-nas), já se desvaneceu há muito. A propaganda salazarista (e característica de uma linha dura da direita europeia e norte-americana) que ilustrava o militante comunista como um «ser diferente», apesar de criar uma crença que perdurou, ao longo de gerações, até aos meus ouvidos, não fez mais que ridicularizar, não o Partido Comunista Português, mas o próprio governo de Salazar durante meio século. No entanto, ao ver o recente Congresso do PCP, e a carga político-emocional que comportou, não consigo evitar pensar na estranha fatia de realidade que sobra do bolo propagandístico da reacção mais anti-comunista.
O PCP não é um partido como os outros. Nem o PNR, na clandestinidade, consegue dar uma imagem «tribal» mais forte do que aquela que os comunistas deram em Almada este fim-de-semana. Mas há que atribuir-lhes algum mérito. Como disse, são um partido de excepção. No meio de uma generalidade político-partidária de carreirismo narcisista e de recíproca adulação juvenil, continuam firmes os comunistas de «linha dura», da «velha guarda», sem dúvidas das suas convicções, e sem sede de poder. Apenas uma coisa figura na mente dos leninistas, jovens e velhos: o «combate». De facto, como partido que jura «combater» tudo e todos (sem olhar a despesas e, sobretudo, sem olhar a sacrifícios, como manda a máxima de Lenine), o PCP conseguiu estabelecer-se, depois do 25 de Abril, como um partido ameaçador no apoio aos sindicatos de trabalhadores (sindicalistas «moderados», note-se).
No entanto, e passando por cima de toda e qualquer análise desnecessária da ideologia patente, podemos, sem problemas, olhar para as criaturas que se juntaram, iradas, em Almada, e verificar que eles não são como nós. Que, politicamente, não são cidadãos livres de um país democrático. Continuam a reconstruir, tijolo a tijolo, com as suas próprias mãos, o muro que uma URSS de Guerra Fria colocou na RDA. Continuam a acreditar, não só nas constatações de Marx ou Hegel, mas no «pioneirismo» de Lenine, Estaline ou Castro. Continuam a votar de braço no ar (agora sem foices, ancinhos e espingardas) para eleger tudo o que seja preciso. Continuam sem pudores entre si, dando opinião publicamente (resultando, por isso, em gordas vitórias de 99% no domínio interno). Continuam, sem tirar nem pôr, a pensar na fórmula mais simples e sangrenta da História: Revolução.
Mas o que mais assusta um liberal ou um conservador habituado a olhar de soslaio para quem enaltece o «oásis cubano» não é o partido sem cara ou a sua ideologia. É, precisamente, a sua «juventude», a sua JCP - na sua maioria, meninos de fraldas, mochilas e lenços palestinianos ao pescoço que, por troca de uns momentos divertidos e «diferentes», juram beijar o retrato de Guevara ou Lenine e prontificar-se para causar distúrbios e desordem quando o chamamento chegar. É vê-los, ainda sem tempo de respirar o ar pós-uterino, abraçados e a gritar máximas partidárias de punho no ar. No fundo, é ver que, mais de 150 anos volvidos sobre o nascimento de um socialismo sangrento (que Marx se esqueceu de emendar antes da sua morte), continua a ser passada, de geração em geração, uma mensagem simples e romântica: que todos os milhões de vítimas internas dos regimes comunistas (União Soviética, China, Cuba, Coreia, etc, etc) foram apenas um gigantesco e corajoso sacrifício por um ideal de sociedade que é possível e está sempre próximo. Salazar não tinha razão quanto aos comunistas que comiam criancinhas, mas ver rapaziada, que em tempos sabia pensar, ser engolida pela imortal utopia do PCP, não deixa de ser assustador...
(Quadro: Rosas Para Estaline, Boris Ieremeevich Vladimirski, 1949)
[João Silva]
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