Homens em guerra
A guerra é, certamente, um dos espectros mais profundos do ser humano. Aliás, a guerra é um «modo de convivência» que tem origem, não só na convivência entre os homens, mas na própria natureza do ser humano. E, mais do que pertença dos humanos, tornou-se corolário do Homem e da sua sobrevivência.
O próprio Professor Michael Howard, eminente historiador militar, no seu The Invention of Peace, diz acerca desta necessidade imperiosa de triunfar sobre os outros: «na história da humanidade houve sempre a divisão entre aqueles que acreditam que a paz deve ser preservada e aqueles que acreditam que ela deve ser conquistada». Por oposição às mentes iluminadas da idade contemporânea, a era medieval foi pródiga em germinar conflitos à larga escala, culminando, na viragem de um milénio, nas grandes campanhas em nome de Deus. Howard cita Santo Agostinho, mais convicto na aceitação da guerra como instrumento «secular» do Todo-Poderoso: «a guerra, ensinava ele, tinha que ser aceite como parte da condição decaída do ser humano, simultaneamente cidadão da Cidade de Deus e de um reino terreno que, apesar de todas as suas imperfeições, desempenhava um papel essencial no propósito divino e que por isso tinha o direito de impor as suas próprias condições. A guerra contra os inimigos do cristianismo era inteiramente justificada (...) e mesmo a guerra interna entre cristãos devia ser aceite como parte dessa condição humana».
Da Baixa Idade Média surgiram as primeiras conclusões: a mesma Igreja por quem foi ensaiada a hipótese de alianças militares supra-nacionais tornou-se a maior (única) crítica da frequente necessidade e ocorrência de conflitos. O próprio Thomas Hobbes viria, mais tarde, a formular uma visão de sociedade à margem da qual sobrevivia o estado natural do Homem: a guerra, que, juntamente com a Igreja e os casamentos reais, representava o papel de mediadora abstracta das relações entre países, entre coroas, quando ainda não se sonhava em autoridades ou tratados aceites e protegidos - a Liga de Nações de Kant.
Por mais que básica que seja a guerra - a realmente «selvagem», «bárbara» e «irracional» atitude que os pacifistas, não sem razão, reprovam -, esta é a última forma de conversação entre homens. Ironicamente, sempre foi considerada a forma mais segura de salvar vidas: enfrentando uma ameaça antes que esta ameaçasse o «principado». Simplesmente, como tudo o resto, popularizou-se, democratizou-se, cada vez mais, até passar de uma função reservada a uma elite para homens normais. Infelizmente, tal como os últimos dois séculos ilustraram, também a morte, pouco gloriosa, no campo de batalha se democratizou.
[João Silva]
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