sexta-feira, agosto 12, 2005

O mundo dos heróis II

O meu mundo, sem heróis, não seria o mesmo. Talvez fosse melhor, talvez fosse pior, não faço a mínima ideia. O certo é que, quando se é criança, idealiza-se o «herói» de uma forma quase romântica. Imagina-se que os heróis são perfeitos, que os heróis são dotados de um número infinito de qualidades e que são dotados de um número reduzido, ou inexistente, de defeitos, o que é bastante compreensível, já que os heróis, para uma inocente criança, são isso mesmo: heróis, perfeitos, sem nódoas no casaco ou defeitos físicos que possam alterar o seu estatuto.

Nos dias de hoje, Napoleão Bonaparte assemelha-se, a meus olhos, a outros tiranos que o mundo contemporâneo hoje conhece. Napoleão é-me tão indiferente quanto Estaline, ou como diria um vetusto senhor, «Zé dos Bigodes». Mas nos tempos de criança era a pose de líder e o general que havia em Napoleão que me fascinavam, não o político, não o homem megalómano. Com efeito, nos tempos em que as cadernetas dos cromos da bola eram abundantes nas minhas gavetas, Napoleão era a pose divina, era o homem que se coroava perante uma Europa estupefacta, era a perfeição.

Porém, com o passar dos anos, a mente infantil vai-se desvanecendo da alma do ser humano. É com a evolução mental e com a aprendizagem escolar e caseira que os mitos se vão quebrando e que os heróis vão desaparecendo. À medida que a biblioteca pessoal vai aumentando, vão diminuindo certas paixões irracionais. É por isso que Napoleão Bonaparte já não figura entre os meus heróis. Napoleão hoje é o tirano, o louco, o megalómano, o homem que morreu em santa Helena com um cancro no estômago. Por outro lado, e seguindo a linha do post anterior para não perder demasiado tempo com outras personagens históricas, Lord Nelson nunca teve, a meu ver, a presença divinal de Napoleão. Pelo contrário, sempre tive a ideia de que Nelson, à semelhança de outros senhores distintos da sociedade britânica, primava pela sua humildade e pela sua coragem. Napoleão também era corajoso, mas foi Nelson quem, depois de ter perdido a visão de um olho e de ter perdido o braço , se não estou em erro, direito em combate, continuou a combater. Aliás, foi a combater que Nelson perdeu a sua vida, mais precisamente em Trafalgar , no ano de 1805, a lutar contra espanhóis e, especialmente, contra franceses. Napoleão, pelo contrário, mesmo que sempre se tenha apresentado com uma dignidade digna das suas funções, não tinha a coragem de Nelson. A dignidade de Napoleão pode ser encontrada no momento em que Napoleão, a Julho de 1915, a bordo do navio inglês Bellerophon, se entrega ao jovem Capitão Frederick Maitland com a máxima altivez. É , em certa medida, de louvar o facto de Bonaparte não ter fugido para os Estados Unidos com o seu irmão Joseph. No entanto, Napoleão morreu na decadência, subjugado pelos seus principais inimigos, os ingleses; morreu a sofrer de uma doença, digamos, hereditária na pacatez de uma ilha do Atlântico. Já Nelson, o homem permanentemente ferido, quase incapacitado para o combate, morreu como morrem os heróis: a combater, a lutar pelos seus. Talvez seja também por isso que ainda hoje se celebra a existência de tão importante figura britânica.

Muitos outros heróis, antigos e actuais, poderiam ser acrescentados a este pequeno devaneio. Porém, o que importa concluir com estes breves exemplos é de muito simples compreensão, facto que me dispensa da elaboração de uma longa lista. O que importa concluir é, então, o seguinte: o herói nem sempre está ligado ao sonho e às divagações infantis e adolescentes que, por serem demasiado imaturas para a compreensão de certas realidades, montam o herói perfeito. Porém, o que tem piada nos heróis, nos verdadeiros heróis, é precisamente o contrário. Ou seja, o que tem piada é conceber heróis humanos como nós, com os mesmos problemas físicos e morais que nós, mas que, não recuando perante as centenas de limitações inerentes à espécie, combateram incessantemente os seus inimigos, já que a última rendição possível, para eles, para os verdadeiros heróis, só pode ser a morte.

[Paulo Ferreira]