sexta-feira, outubro 14, 2005

Alice



A tendência involuntária para inflacionar os elogios a um bom filme português, embora compreensível, devido à raridade que é encontrar um filme nacional que combine simplicidade e excelência, é realmente irritante. Com Alice (2005), parece surgir um sinal de mudança das tendências do cinema em Portugal, para fora das viagens culturais ou de filmes surrealistas, em direcção a uma enorme segurança de realização e de motivos. A primeira longa-metragem de Marco Martins (e sublinhe-se primeira) é notável em diversos aspectos.
A extraordinária interpretação de Nuno Lopes (um trabalho de veterano num actor jovem) é louvável, mas, sinceramente, não me parece um acaso que a personagem de «Mário» esteja tão bem no filme - Marco Martins conduz o filme de forma seguríssima, revelando uma enorme contenção a nível emocional e transmitindo-o aos seus actores, deixando a maior dinâmica para os excelentes trabalhos de Carlos Lopes (numa fotografia sempre escura, coleccionando pessoas e pessoas e sem rosto) e de Bernardo Sassetti (uma banda sonora genialmente assombrosa).

Alice é a personagem central do filme. Uma presença ausente que faz o filme existir, ou, como dizia Eduardo Prado Coelho há uma semana: «vemos o que não está lá, a criança desaparecida, mas que organiza emocionalmente todo o espaço». Alice é também a filha desaparecida de Mário e Luísa (Nuno Lopes e Beatriz Batarda), dois pais vivendo uma intensa dor pela perda de uma filha, uma dor comum e, no entanto, expressa de formas tão diferentes: Luísa é uma mulher envelhecida, que perde rapidamente toda a esperança de voltar a contactar e encontrar a filha; Mário é um homem sem expressão, de olhos vazios durante grande parte do filme, que apenas ganham vida à mínima pista do paradeiro de Alice. A procura incessante e rotineira de Mário por Lisboa, durante 193 dias, em busca da filha, repetindo todos os dias o mesmo percurso que fez no dia em que a perdeu (diz que «se quebrar a rotina, tem medo de nunca mais a ver»), e perdendo, pouco a pouco, o rasto também das outras pessoas, incluindo a sua mulher, embrenhando-se num universo paralelo em que só existem ele, o seu caminho diário, as suas câmaras (que espalhou pela cidade, vigiando todas as pessoas que passam), os sítios onde espera encontrar Alice, o seu quarto onde visiona todas as cassetes de vigilância ao mesmo tempo e, é claro, a sua filha Alice.

Muito poderia ser dito acerca de Alice, pois, surpreendentemente, é um filme completíssimo. Um filme de uma enorma força emocional, chocante, mas sem a comoção melodramática a que outros realizadores já deram largas com um tema tão delicado como este. A forma «gratuita» como se perde uma filha numa cidade já de si labiríntica é assustadora, sendo propositada a analogia de Alice do filme com a Alice de Lewis Carroll, caíndo interminavelmente na toca do coelho, o coelho que tinha todo o tempo. É este «pairar interminavelmente sobre o tempo» o drama e a obsessão de Mário, cujos esforços muitas vezes vãos e outras vezes com resultados cruéis se tornaram o seu único motor de vida.

Alice, despretensioso, contido, forte e elegante, é um dos melhores filmes portugueses que já vi e, seguramente, um dos meus favoritos durante os tempos que se seguem.

[João Silva]