Onda bafienta em Lisboa
As ondas de calor, que atravessam o frágil corpo humano como se fossem setas incandescentes, tornam-se cada vez mais frequentes, à medida que me habituo a seguir a disposição conservadora de um amigo. Segundo esse meu amigo, quando fazemos caminhadas de três quilómetros ao abrigo de um sol quase insuportável, depois de uma refeição, estamos a seguir uma disposição conservadora. Bem compreendo os seus argumentos: gostamos de ver sempre as mesmas caras familiares, que nos servem tão bem aquelas miseráveis refeições; gostamos de contemplar o espaço que nos rodeia. No fundo, preferimos o conhecido ao desconhecido.
Porém, aquelas autênticas «peregrinações» só são suportáveis porque somos pessoas educadas para conviver num mundo hobbesiano. É por isso que respeitamos o espaço de outros seres animalescos que se vão cruzando connosco, sem respeitarem algumas das regras mais fundamentais da cidadania. Respeitamos as regras da decência, de forma a passarmos despercebidos pelos outros. Basicamente é isto. Não se pense é que a nossa caminhada se torna mais fácil por sermos indivíduos bem comportados.
Depois de cumprida a disposição conservadora, regozijamo-nos por tal feito. E, por isso, decidimos festejar. Como indivíduos civilizados que somos, festejamos em livrarias. Procuramos todos aqueles livros que nos enchem de vaidade. Todavia, é quando chegamos às livrarias que reparamos em todos aqueles indivíduos incautos, que não respeitam o espaço dos seus semelhantes e que, por conseguinte, se arriscam a não sobreviverem a um mundo frio e cruel, que desconhecem existir. Esses indivíduos seriam, em dias de Inverno, normais. Dir-se-ia, até, que, em dias de menos calor, viveríamos em completa harmonia uns com os outros. Nada mais absurdo. Pelo menos, enquanto o uso de desodorizante não for obrigatório.
[Paulo Ferreira]
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