A invenção
Bloch
Até ao dia em que decidira amar, a vida de Bloch fora simples, muito simples. Dir-se-ia que a vida de Bloch, até ao momento em que certas verdades eternas e imutáveis deixam de o ser, fora uma vida construída em função de certos objectos não muito complicados. Uma caneta e uma folha de jornal rasgada eram, com efeito, a essência da vida de Bloch.
A decisão de amar foi fácil para Bloch. Afinal, havia muito tempo que Bloch se cansara dos dias em que a modorra se confundia com o animal. Bloch precisava de tempestade. Bloch precisava de movimento. «Sem movimento, não há amor», escrevia Bloch constantemente na sua folha de jornal rasgada. O mais difícil nesta história foi, para Bloch, conseguir arranjar um objecto de adoração. Era um facto que, sendo um animal repugnante, Bloch se sentia desprezado pelo mundo e, especialmente, pelas mulheres. Bloch era um animal repugnante.
Natália
Até ao dia em que decidira partilhar os seus encantos com um animal repugnante, Natália fora uma mulher feliz, muito feliz. A felicidade deixou de ser uma realidade para Natália no momento em que começou a pensar. O animal feio, viscoso e, claro, repugnante que era Bloch, não somente era dotado de qualidades grotescas como também pensava. Natália, a mulher que vivera para o sexo num passado não muito distante de Bloch, tornou-se numa mulher frígida.
A decisão de partilhar os seus encantos e, de certo modo, os seus sentimentos com Bloch não foi fácil para Natália. Natália era o movimento. Bloch era uma pedra. Bloch queria amar. Para Natália, a quietude de Bloch representava o amor do mundo. Para Bloch, a sua quietude era sofrimento. Natália pensava que o amor se guardava em pequenas caixinhas de plástico, ao lado das jóias. Natália gostava de sexo.
Natália e Bloch
Até ao dia em que um homem desejou amar e que uma mulher desejou ser amada, o mundo não viveu de sonhos. Depois, as coisas mudaram: atingiu-se o amor. Os gemidos desvairados de uma mulher ninfomaníaca e os sonhos deprimentes de um verme acabaram. Bloch, que era incrivelmente feio, tornou-se, com o advento do amor, um pouco belo. Natália, que confundia, na sua mente sempre complicada, sexo com sentimentos, descobriu que só começou a amar no dia em que beijou um homem que cheirava a tudo menos a sexo.
A felicidade não existe. O amor não existe. Bloch não existe enquanto ser sentimental. Natália também não. Por conseguinte, estes dois seres viveram uma grande ilusão, que só não teve consequências trágicas porque Bloch era um impotente no seu máximo esplendor e Natália uma grande mentirosa, que trocou o movimento (sexo) pela piedade.
[Paulo Ferreira]
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