Ela
Ela era tão politicamente correcta que, quando teve o seu primeiro filho, apelidou-o de Humanidade.
[Paulo Ferreira]
Um blog partilhado por João Silva e Paulo Ferreira
Ela era tão politicamente correcta que, quando teve o seu primeiro filho, apelidou-o de Humanidade.
Uma rapariga para um pretendente a namorado: «Se tu te voltares a roçar em mim, eu juro que não me aguento!». O pretendente voltou a roçar-se e, claro, não demorou a levar um estalo mesmo no centro da sua feia carantonha. Mas isto não é assim tão claro porque o rapaz, em vez de ter levado um estalo, poderia ter recebido um simples beijo. Afinal, um gajo conhece tão mal a juventude.
Pouco depois, a mesma rapariga para o mesmo namorado: «Se não fizesse uma passagem de ano decente, não me conseguiria encarar ao espelho».
Edinho, habituado pelas agruras da vida a mentir, gostava muito de brincar com os sentimentos das pessoas que o rodeavam. Brincar é o termo certo. Edinho brincava com as palavras, com as respirações, até chegar aos sentimentos. Dos outros, claro. Por outro lado, Edinho nunca brincava com os seus próprios sentimentos, até porque não os tinha.
Meia-noite e meia. Rapidamente passam as horas
Não tenho por hábito fazer «balanços» do ano. No entanto, a revelar algumas descobertas de 2005, talvez escolha três: nos livros, Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares; no cinema, Crash, de Paul Haggis (que, pela ausência de referências, atribuo a 2005); e, na música, Get Behind Me Satan, dos The White Stripes, mais pela «confirmação» que por outra coisa.
Piet era um asno. Mas não é aí que eu quero chegar. Piet fazia, isso sim, do fim do ano uma chegada triunfal ao fim do mundo. A contagem decrescente para o dia 31 começava bem mais cedo do que para as outras pessoas. Na verdade, Piet, embora não acreditasse no fim do mundo, via-se na inexplicável obrigação de reunir toda a gente que conhecia - minto, toda a gente que pudesse, mesmo que os não conhecesse - no maior salão que encontrasse. Sentia-se uma espécie de Noé dos tempos modernos. Pelo menos, nos tempos modernos, todos o louvavam pela sua acção de caridade anual. No momento da passagem de ano, acontecia sempre o mesmo: contavam de dez para zero; alguém rebentava algo; e todos se mexiam o mais que pudessem. «O movimento é lei! Consegui», gritava Piet de copo na mão. Fechava os olhos e entregava o corpo ao fim do mundo. E, sem falhar, todos os anos, alguém lhe batia no ombro e dizia: «Piet, conseguiste outra vez! O movimento é lei». Piet não acreditava em Deus, mas sempre encarava isto como um sinal divino. Talvez por isso acabasse sempre a noite nu, no meio da pista de dança, como Adão.
J., um dia, disse que a desejava. Por essa mesma razão, C., rapariga de princípios, pegou nas suas coisas e saiu de casa para sempre. Na verdade, já nas escadas, não conseguia conter um enorme sorriso. Afinal, na sua concepção, havia vencido a tentação, o desejo. «Desejada, nunca!», pensava, enquanto apertava ainda mais as malas na mão.
O amor dele era, inevitavelmente, muito físico. Ela, incomodada com a paixão dele, um dia disse-lhe: «Não vale a pena correr, pois as nossas ruas apenas se voltarão a cruzar por linhas telefónicas, por telemóvel». Na verdade, tudo o que ela sempre teve para dizer àquele homem disposto a morrer não era mais do que isto: «Não corras».
Ele era tão inventivo, tão inventivo, que, no Natal, queria que lhe oferecessem uma prostituta.
Marciano: É mesmo verdade que no vosso planeta as pessoas bebem até à morte no dia da passagem de ano?
Numa manhã solarenga, um homem sem coração tenta começar a escrever a sua obra triunfal, o livro dos livros, a história da humanidade, com todos os seus percalços e desatinos, num só simples caderno. Todavia, o caderno do homem sem coração, à semelhança de todos os outros cadernos menos dotados para a glória, encontra-se vazio. Sem uma frase ou palavra que possa adocicar o espírito do escritor menos precavido contra as intempéries da escrita. E vazio continuará, pois o homem sem coração, pensando na humanidade, não consegue transpor para o papel a bala que lhe atravessará o crânio.
Uma pedra, proveniente não se sabe bem de onde, cai mesmo em cima da atormentada cabeça de Adérito.
August, sentado numa cadeira, pega numa pestana caída e pede um desejo. Depois, momentos mais tarde, August levanta-se e, surpresa das surpresas, morre de enfarte. Desejo cumprido, dir-se-ia.
Uma tragédia humana, foi o que se abateu sobre Ciro, o homem que aos trinta e dois anos decidiu amar sem saber o que isso era.
O miúdo gostava de se pendurar em bancos de autocarro para contemplar a beleza da natureza. Sendo o miúdo pequeno, tornava-se natural o acto de se empoleirar em algo que o tornasse mais alto. Certo é que, empoleirado nos bancos de autocarro, o miúdo conseguia vislumbrar aquilo que muitos de nós, mortais, não conseguimos: a beleza de um arco-íris, por exemplo.
Confesso que não tenho o costume de ver programas de stand up comedy. E em especial em Portugal. Excepção feita ao que vem dos Estados Unidos, único país com tradição nesse género de comédia. Nem aqueles cujo formato tem o objectivo de «ser» stand up comedy, nem quando Herman quer fazer incursões nesse domínio, que não é o dele. E, especialmente, não sou nem de perto apaixonado admirador desse rapaz que, nos tempos últimos, deu o grande salto de amador da construção civil para comediante de topo: Fernando Rocha. Dizem que este rapaz fez a revolução na comédia portuguesa. Felizmente, também dizem, essas mesmas pessoas, que Paulo Coelho revolucionou a literatura portuguesa, que Dan Brown revolucionou o conhecimento da Igreja Católica Romana e que Michael Moore revolucionou o cinema.
- O que é importante num debate televisivo?
As lágrimas dos mortos queimam...devoram a vida; porque bem sinto a morte chamar-me...
GEORGE: This thing can't hurt me, can it? I mean, it's a laser. What if it hits my eye?
Franz Josef vivia num castelo, agrilhoado pelas correntes que o ligavam ao mundo, sem nunca encontrar qualquer tipo de sinal que o aproximasse da realidade. Até que chegou o dia em que se apaixonou por uma mulher que, não fossem as suas belas formas femininas a confirmarem a sua existência, mais se parecia com uma miragem. Josef, então, decidiu libertar-se das correntes que o prendiam e correu. Correu, correu, correu. Até que se cansou de apanhar a mulher por quem se apaixonara. Era um pobre diabo, esse Franz Josef. E voltou para dentro do seu castelo, para se voltar a enfiar no centro do mundo, no centro da atmosfera, para nunca mais de lá sair.
Segundo o Diário de Notícias, José Sócrates - primeiro-ministro que, se eu não soubesse que era português, suporia de carácter impoluto e divinal - veio criticar as declarações de Ribeiro e Castro, que atribuiu ao exemplo político prático marxista-leninista uma boa parte das culpas no terrorismo contemporâneo, como «irresponsáveis». É curioso que José Sócrates ache opiniões adversas «irresponsáveis», visto que convidou para a pasta dos Negócios Estrangeiros alguém que personifica a «Adinistração Bush» (como gostam de dizer) como a descendência «nazi» do século XXI, e apoia Mário Soares, um ex-Presidente da República que há muito que vê em Bush e em Blair os grandes fomentadores (ou incitadores) do terrorismo dos extremistas islâmicos. Ora, Ribeiro e Castro, se não olharmos a possíveis preconceitos políticos que possa ter e generalizar, está no seu completo direito de ter opinião sobre os valores e exemplos que regem os portugueses e de os criticar se assim lhe apetecer, independentemente de ser ou não a visão correcta (em parte ou por completo).
Ele era tão genial que, mesmo a assinar o livro de cheques, fazia notas de rodapé.
Ao fazer a ronda habitual pelos livros de jornada, deparo-me com uma frase interessante:
Desde pequeno que sonho em transportar-me constantemente de táxi. Bem sei que o sonho chega a roçar os limites de toda e qualquer parolice. No entanto, ao ver os táxis passarem por baixo da minha janela, não posso deixar de confessar que gosto de andar de táxi. Só o nome fascina-me. Táxi. Só o nome dá vontade de abraçar. Queria ser taxista.
Mas não puxei atrás a culatra,
Finuras entrou dançando para dentro da carruagem do Metro. A camisa de cavas, o boné, o fio ao pescoço e a vida no bolso denunciaram-no imediatamente. A forma como andava era a sua mensagem lapidar ao mundo: eu vivo. Infelizmente, outra das suas virtudes era ver muito mal. Andava de forma genial, mas via muito mal. Talvez fosse essa a razão pela qual Finuras fazia um grande esforço (embora dissimulado) para se ver ao espelho no vidro da porta do metro. Talvez também, por isso, não tenha reparado que, ao transmitir todas as suas energias para as mamas num gesto de enorme vitalidade, dava a conhecer às pessoas do lado de fora da porta uma nova personagem. Algumas pessoas não podem ser classificadas com siglas, precisam de ter nome. Finuras chegara a Lisboa.
A mesa estava posta. Com toda a pompa que o momento exigia. As janelas, no entanto, continuavam fechadas para afastar o espírito da excepcionalidade dos curiosos do exterior. Afinal, nem todos os que ali estariam presentes tinham direito a festejar a quadra segundo o regime. O bacalhau, conseguira-o «Domingues», mas arranjara-o Zé Maria. Quem o havia cozinhado continuava em segredo. Tudo indicava que a ceia correria pelo melhor. Ainda embora faltasse muita gente.
Por aqui (Setúbal), também se fazem bonitos. Desta vez, num monumento da I Grande Guerra. A Câmara Municipal de Setúbal (CMS), actualmente uma autarquia «da» CDU, decidiu enfeitar um vetusto monumento, erigido em honra dos combatentes portugueses da I Grande Guerra, com luzes e fios, imitando uma árvore de Natal. É, talvez, conhecida a obsessão desta CMS pelos monumentos (lembrar o fálico monumento de homenagem ao «anti-fascismo»), mas enfeitar a memória da guerra de 1914-18 como um pinheiro natalício demonstra um sentido de oportunidade bem agreste. Para não dizer ridículo.
Se a Prisa conseguir impor telejornais de 30 minutos (no limite 40, em casos muito excepcionais), contribuirá para uma revolução nos media. Pior do que a jornalista que se despede, é o perfil de almanaque de escândalos & hipocondria do Jornal Nacional.
-Queres dizer que viste Hitler?
Ashley Brookes,Kinzie Kenner,Crissy Moran, Adriana Sage e Crystal Klein.
- How long is it since your last confession, my child?
Uma das coisas que mais aprecio em José Saramago é a sua capacidade inventiva, ou a sua originalidade criativa. Não digo que aprecie, por exemplo, a forma barroca que Saramago arranjou para escrever os seus livros. Porém, temáticas de livros como As Intermitências da Morte são, pura e simplesmente, brilhantes. Imaginar que chegará o dia em que a morte deixará de matar é, para além de surreal, uma imagem que não pode deixar de inquietar o leitor comum. Ainda mais quando no Público de hoje se noticia que um político regional brasileiro quer impedir os seus cidadãos de morrerem. Com efeito, a morte, nas suas mais variadas formas, sempre foi um assunto recorrente na literatura e na vida em geral. No caso de Saramago, temos a velha morte, vestida de negro, com o seu tenebroso crânio tapado por uma túnica. Temos a velha e funesta morte a fazer greve e a, posteriormente, voltar a matar. Temos a morte que quer voltar a matar mas que não consegue apanhar um simples e pobre violoncelista. Temos a morte que deixa de ser morte porque se apaixona pelo mesmo violencelista. Enfim, temos a morte vista sob várias perspectivas, sempre todas elas interessantes.
Fumar é um acto cívico. Tão cívico quanto outro qualquer. Minto. Fumar não é um acto tão cívico quanto ler boa literatura (a menos que se consiga conciliar o acto de fumar com o acto de ler).Por outro lado, existem actos que não são cívicos. Por exemplo, comer de boca aberta não é um acto cívico. Dizer o que vem à cabeça também não o é. Mesmo assim, não poucas são as pessoas que comem de boca aberta ou as pessoas que só falam aquilo que lhes dá na real gana. Exceptuando algumas (poucas) excepções, são essas mesmas pessoas que devoram um porco à vista de todos ou que, seguindo os padrões do novo-riquismo, se dão ao prazer de conciliar a combinação de lexemas estrangeiros (pastiche, por exemplo) com o português padrão exigido às pessoas que dizem sempre o que pensam e que pensam sempre o que dizem. Para essas pessoas respeitadoras da forma de viver nacional, fumar não é um acto de civismo. Não. Para essas pessoas, fumar é um acto diabólico, é uma forma repugnável de afronta aos padrões nacionais e humanos. Com efeito, para quem vive a sua vida com hálito de cebola, fumar é um acto repugnável e hediondo que, um dia, acabará por destruir o mundo. Porém, para esses grandes devoradores de pensamento light, digo e repito: fumar é um acto cívico. Tão cívico quanto outro qualquer. Fumar não prejudica a saúde: enaltece o espírito. Fumar, ao contrário do que muito se pensa, não mata, consome. Fumar ajuda a fugir, ajuda a passar o tempo, ajuda a quebrar os momentos de solidão. Enfim, fumar ajuda um pouco a enfrentar esta confusão a que se chama vida.
O louco era louco porque nadava, nadava, nadava, e nunca chegava à sua meta. «Nada, campeão! Dá ao braço!», ouvia ele.
Ele era um grande poeta. O poeta é caracterizado por combinar uma extrema sensibilidade com um sentimento de grande profundidade emocional. Ora, ele era tão bom poeta que a sua cara era a cara da poesia: enquanto o lado direito da cara olhava, sorria e questionava os transeuntes, o lado esquerdo sofria continuamente, chorava permanentemente os males do mundo, a experiência assimilada. A sua grande dúvida, sentado à escrivaninha, era: com que mão escrever hoje?
O louco vivia num país onde trabalhar era difícil. O louco vivia num país onde o conceito de iniciativa era praticamente inexistente. O louco vivia em Portugal, um país onde o Estado é dono e senhor de tudo o que respira e que não respira. O louco era louco porque sonhava. O louco era louco porque pensava, humildemente, que no seu país a iniciativa e a originalidade eram premiadas. O louco era louco. E morreu, asfixiado.
O post do meu caro amigo Bruno Alves sobre Jerónimo de Sousa e a (falsa) «viragem» da face política do Partido Comunista. O PCP, não estando a mudar os seus fundamentos, deu, no entanto, a mão ao «pós-fascismo», com um homem mais perto dos militantes, dos «soldados», do que dos «funcionários». Parece um tema e uma constatação óbvia, mas é mais importante do que normalmente se pensa. Fica um excerto signifivativo do post: «O carácter unipessoal da eleição, e a presença de Jerónimo nos vários debates, atrairá sobre si uma atenção, e simpatia, que o PCP, enquanto partido, dificilmente conseguiria atrair. Se é verdade que a sua campanha é feita para fazer passar a mensagem do PCP, é também verdade que o facto de Jerónimo de Sousa se apresentar enquanto "Jerónimo de Sousa", e não como "Secretário-Geral do PCP", facilita o aproveitamento dessa onda de apreço de que tem sido alvo. E que é, diga-se de passagem, algo de extraordinário, conquistado com todo o mérito pessoal».
Em todas as ruas te encontro
Observando um sujeito que se aparenta com Denis Rodman na forma de vestir e com o excelso Michael Moore na forma de pensar, chego à conclusão que existem formas de vida muito estranhas. Não que, antes de observar esta estranha personagem, não tivesse conhecimento da existência de seres estranhos. Pelo contrário, é observando-me ao espelho que me apercebo do ridículo do meu mundo. O meu mundo é estranho. Eu sou estranho. Provavelmente, o mundo que me rodeia não será menos estranho. Ora, este ser aparentado com Rodman e com Moore apresenta-se a meus olhos como uma figura estranha, quase mais estranha que a maioria dos mortais que me rodeiam no dia a dia. Este ser, dir-se-ia, extraterrestre, por mais que tente ser normal, não consegue. Geralmente, as pessoas ditas «normais» vivem com milhões de deficiências e de problemas relacionados com a loucura. Porém, essas pessoas normais escondem as suas deficiências e os seus problemas. Porque temem o vexame e a humilhação. Temem que, se dessem liberdade à maior parte das suas loucuras, se vissem presas dentro de um hospício. Portanto, essas pessoas que se escondem são normais, precisamente porque se escondem. Já o ser extraterrestre, que tenho vindo a observar durante os dias, não esconde nada. Nada. Todo ele é loucura. Todo ele é demência. Todo ele é um riso louco que, a qualquer momento, pode ferir ou matar. Este ser é um indivíduo perigoso, mais para ele próprio do que para os outros, é certo, no entanto, nada me impede de pensar que um homem que se apaixona pela loucura a este ponto se pode tornar letal como uma bala, funesto como uma peste. A menos que indivíduos como este, que não temem o vexame nem a humilhação, não conheçam os padrões sociais que, segundo alguns, tornam toda esta balbúrdia numa sociedade estável. Quanto a mim, vou pelos Gregos. Vou pelo Pharmakos. Matemos os feios. Acabemos com a loucura. Comecem por mim.
Gombrowicz desejava uma morte gloriosa. Gombrowicz sonhava, aliás, com o dia em que, por exemplo, morreria na cruz, como o Senhor. Numa tarde de calor, Gombrowicz, homem triste por vocação e cómico por acidente, morreu. A palitar os dentes.
O espelho de Oss dava sinais de perfeição. Oss era bem parecido. Oss, diziam as mulheres, era realmente lindo. Oss dizia o mesmo dessas mulheres. Oss era lindo. «No meu espelho vive a cara do amor», dizia. Oss tinha uma dessas belezas de quadro renascentista. Uma beleza ambígua de homem de retrato. Oss não se importava. No entanto, Oss era tão bem parecido que, um dia, o seu vizinho o sodomizou. «És bem parecido», ia dizendo o vizinho enquanto Oss se debatia. No auge do desespero, não conseguiu viver com o peso da dualidade. Comprou um revólver e acabou com a própria vida. Oss ainda é belo. Escusado será dizer que apenas disparou no espelho. Disparou na cara que o olhava do espelho. Oss era meio cobarde, mas há que lhe dar crédito: ao disparar contra a beldade no espelho, Oss mostrava que ainda era um homem, agora em luta contra todos os espelhos que lhe revelem de novo a sua vítima.
P. era um apaixonado. Aquilo a que alguns chamam um rapaz dedicado ao momento. De facto, P. era tão apaixonado pelo momento que, ao penetrar na boca desprevenida da sua namorada com a língua, dobrava-a para trás com força. Enquanto a rapariga sonhava com amor, P. zelava para que os dois corpos se mantivessem inertes, como se o Céu preparasse um polaroid de um casamento.
No passado obscuro, a minha mão perdida, à tua procura. Num futuro apolíneo, as tuas mãos sem vida, amando. Em nós, olhos sem expressão, acompanhando todo o dealbar de um novo beijo que, fogo extinto, será apenas a junção de dois corpos desiludidos.
coitado do hamlet
Crane, atleta brilhante e pensador genial, tinha uma forte tendência para a auto-destruição. Um dia, depois de um momento de glória desportiva, pensou no Homem e na sua triste existência. Refugiou-se em casa e, com uma lâmina, desenhou um estrondoso H nos peitos.
Há o caso de quem se renuncia a escrever porque se considera ninguém.
A 7 de Dezembro de 1941, a marinha japonesa efectuava um ataque em massa a Pearl Harbor, num golpe material e moralmente devastador para a estacionária frota americana. No filme Tora! Tora! Tora! é célebre o alerta de um almirante japonês face à euforia da vitória dos seus compatriotas: «Apenas acordámos o urso adormecido». Assim foi. No dia seguinte, a 8 de Dezembro, os Estados Unidos da América declaravam guerra a Hirohito e entravam formalmente na Segunda Guerra Mundial. Um dia que viria a determinar o futuro do Mundo. Um dia que deve ser memorizado quando se pensa na importância de ter um país como os EUA do «nosso» lado.
No debate de hoje, Jerónimo de Sousa afirmou que Mário Soares (durante os anos da sua presidência) «foi um árbitro que engoliu muitas vezes o apito». Só por isso, Jerónimo merece um grande abraço e, para ser franco, uma votação generosa.
Quando me falam do «português típico», penso imediatamente num pacato cidadão que gosta de palitar os seus maviosos dentes, entupidos até às gengivas de saudável bacalhau da Noruega. Penso também em (muito) vinho tinto e no 25 de Abril. Ora, esta pode não ser a imagem mais ideal do português típico. Admito, até, que não exista aquilo a que se possa apelidar de «típico». Com efeito, não acredito que a população portuguesa, na sua generalidade, tenha comportamentos excessivamente padronizados, que se possam incluir naquilo a que, muito alegremente, chamo de português típico. Numa visão um tanto ou quanto inócua, diria que os comportamentos mais padronizados das gentes portuguesas não se encontram em território nacional. Não, encontram-se espalhados por essas saudosas comunidades de estrangeirados da França, da Alemanha , dos Estados Unidos, do Canadá, etc. Quem não conhece a descendente de famílias transmontanas, que se costuma passear no Verão pelas praias portuguesas com as suas pérolas linguísticas do género «Oui Gabi, agora é que dissestes tudo: nem tanto ao mar nem tanto à terra.» Quem não conhece o senhor Navalhadas, antigo ganhador de pão nos Estados Unidos, que passa a vida a chorar pelo pendurar das botas de Eusébio? Enfim, se existe um português típico, esse português não se encontra em Portugal. E, se, por acaso, se encontrar, é porque já passou as passas do Algarve no estrangeiro em décadas anteriores ao presente.
«Calotes», artigo de Francisco Sarsfield Cabral, no Diário de Notícias. Aqui fica a reprodução à Insurgente:
Pergunta-me o Paulo o que eu acho disto. Ora, serão os americanos mesmo estúpidos? São. Serão os portugueses realmente iletrados? Claro. E os ingleses, serão ignorantes? Pode-se dizer que sim. Qualquer pergunta ou pseudo-estudo sobre a estupidez dos homens (ou sobre o «fenómeno da ignorância», para quem vive no século) terá, necessariamente, de encontrar uma resposta afirmativa. Repare-se na nossa própria miséria intelectual, num país que recomenda «proteger o que é nosso», o que é português, condenando assim boa parte das artes de há 20 anos para cá à quase nulidade.
que te estás a preparar para aparecer sexta-feira no Fox Trot! Muito bem, meu caro, muito bem.
É típico de gente com uma grande formação em pequenos nadas criticar o «outro». Com efeito, para quem não sabe nada de nada, criticar o «outro» é o melhor desta vida. Por exemplo, a América. Quantos desses grandes especialistas em temas como o amor não correspondido sonham em escrever, um dia, um livrinho de setenta páginas que relate os podres escondidos da sociedade americana? Tendo em conta o número de livros de Noam Chomsky existentes nas estantes da Fnac, diria que muitos. Muitos são, então, os que sonham com a escrita do livro perfeito, com a escrita do livro que contém as «verdades» todas sobre o país de todos os males. Ora, não discuto o facto de os Estados Unidos serem dos países que mais problemas enfrentam neste preciso momento(alguns desses problemas representam, aliás, uma tragédia). Também não discuto o facto de existirem pessoas nos Estados Unidos que, só por si, conseguem tornar dispensável alguma da opinião antiamericana que corre por este paraíso celeste, a que se costuma dar o nome de Europa. Porém, e pensando bem nos problemas que a América tem por resolver neste momento, dir-se-ia que existem (muitos) países em situações bem piores. Olhe-se, por exemplo, para esse grande país qe é, se não me engano, Portugal. Olhe-se para a França, olhe-se para a Itália, olhe-se para a Alemanha. Olhe-se.
Ela era tão profissional que, um dia, o seu patrão, encantado, pediu-a em casamento.
Ele era tão culto que, de cada vez que salivava, caía-lhe um pastiche da boca.
Ele era tão engenhoso nos seus envolvimentos sexuais de alto risco que, um dia, viu-se morto. Sequinho.
Dizia, há tempos, um caro amigo que deplora o facto de se associar a infelicidade pessoal ou privada de um escritor à suposta «genialidade» da sua obra. Isto é, o que esse meu amigo queria dizer era que o escritor «não precisa de sofrer» para ser um bom escritor. De facto, tem razão. E não tem.
O «atracão», que eu pratico com denodo e impunidade nessas ruas pejadas de gente quando há arraial na terra, é maneira mais em voga de inspirar simpatia, ternura ou paixão à mulher. Torcer entre dois dedos, rangendo os dentes, a ponta dum seio ou a polpa duma nádega, é uma gentileza, um piropo, uma galantaria. Herdei talvez das Conquistas o hábito de escolher a fêmea como se escolhe o melão na praça: amachucando-lhe as partes tenras.
A velha entra no supermercado com ideias de comprar um pedaço de carne. Um pedaço. A velha tem rugas, pêlos, varizes. A velha tem dores. Mesmo assim, a velha deseja ardentemente um pedaço de carne. Para o mastigar (ou para se esquecer das dores).
A velha entra no supermercado com ideias de comprar um pedaço de carne, sem saber que o pedaço que encontrar sairá do corpo do seu defunto marido.
Através de uma breve troca de impressões, descubro que Ernst Jünger, nome que serve de título a um texto do livro Biblioteca, também é o preferido de M. Tavares.
Passo pela Almedina para arrancar algumas (preciosas) palavras ao meu escritor português preferido e consigo. Vinte minutos à conversa com Gonçalo M. Tavares. Só eu e ele. Os dois. Os pêlos dos braços arrepiaram-se.
Se não estivesse a escrever sobre um autor que muito aprecio, seria capaz de exclamar, a plenos pulmões, um grande ufa! de alívio. Afinal de contas, não é todos os dias que se acaba de ler «toda» a obra de um autor. Felizmente, como a obra em causa é a obra de Miguel Esteves Cardoso, não sinto qualquer tipo de alívio ou de contentamento por ter acabado de ler todos os livros que ele escreveu. Pelo contrário, sinto-me triste, terrivelmente triste por não poder comprar livros de Miguel Esteves Cardoso que ainda não tenha lido. Esta sensação de impotência, que a partir de hoje me acompanha, é similar àquela sensação do jovem apaixonado que, no momento em que os beijos lhe sabem melhor, vê o seu par romântico fugir-lhe entre os dedos sem nada poder fazer.
Zeca era tão sensual que, entre a hora de sair do emprego e a hora de deitar, atacava em chuveirinho.
Ela entra no carro. Perdida. Uma lágrima percorre-lhe a face. À sua espera encontra-se um homem. Alto, gordo, feio, mau. No outro extremo da cidade. O homem encontra-se no outro extremo da cidade à sua espera. Com uma faca escondida no casaco. Com uma faca escondida no bolso para a matar. É mau, o homem. Um verdadeiro assassino à antiga. Ela sabe o caminho para o outro extremo da cidade. É para lá que conduz o seu automóvel. A toda a velocidade. Para o outro extremo da cidade. Vai morrer, a mulher. Perdida.
O amor é um de muitos fenómenos celestes que, à semelhança dos extraterrestres, pouco ou nada se deixam mostrar. É nas noites mais frias (ou solitárias) que contemplo, à distância, certos fenómenos celestes. Contemplo. Só. Contemplo, sem com eles conseguir interagir. O amor. Que bonita expressão. O amor. Poderia ficar uma noite inteira a escrever repetidas vezes essa expressão. Nada se alteraria. Eu não chegaria a ele nem ele chegaria a mim. O amor, enganador sentimento que faz com que o Homem cometa as maiores loucuras. O amor, ferida aberta que nunca deixa de doer. O amor, que torna as pessoas meros rótulos nos quais se inscrevem coisas como wanted ou not wanted. O amor.
«Ainda não sei bem quem é Co Adriaanse. Mas sei quem é Jorge Costa e é muito pouco digno o que se passou em relação à saída do capitão. O Bruce Willis de Ermesinde.»
Quatro homens viviam em conjunto. Felizes. A determinada altura um dos homens decidiu convencer outros dois a eliminar o quarto elemento do grupo. «Ele tornou-se perigoso. De qualquer forma, ficaremos com os seus bens», disse. E assim foi. Mataram o quarto elemento. No entanto, os outros dois aproveitaram e eliminaram também o terceiro no momento. Este terceiro, concordaram eles em segredo, «era um sujeito perigoso, vingativo. Tinha de ser morto antes que nos virasse um contra o outro». A ameaça desapareceu. Ficaram, também com os bens do terceiro, assim como do quarto elemento. Acabava de nascer, portanto, o pensamento racional.
O A Vida dos Meus Dias acabou em grande (com Raúl Brandão). Esperemos que este abandono da caríssima senhora Ana Gomes Ferreira não seja prolongado e, claro, que não abranja o resto da família.
A nossa civilização só se desenvolveu no plano material. Perdeu a alma.
Massagista é aquela pessoa que começa fazendo massagem e acaba masturbando o massageado.
Há tempos, numa entrevista, uma inexpugnável representante da mentalidade popular (sob a forma de «entrevistadora») perguntava, num jornal qualquer, a Pedro Paixão: «porque é tão infeliz se ganha bem e tem uma boa vida, um bom emprego?». Para a jornalista, a pergunta já trazia a resposta. Era uma pergunta do género daquelas que apenas querem dizer «nem-acredito-nem-me-interessa-vou-só-perguntar-para-ver-o-que-este-parvo-responde». Pedro Paixão era, para ela, uma crua representação do escritor que «se faz triste». A jornalista era, para mim, uma crua representação da felicidade eterna: Deus não salva, o «homem tem de se salvar a si mesmo, ser feliz todos os dias».
Ele pensava. Ela não.
O que Johnson nunca pôde imaginar é que a sua morte o tornaria uma espécie de Werther nova-iorquino, pois a cidade, de manhã à noite, imitando Paris, povoou-se de jovens suicidas que, deslumbrados por aquela morte com bule de prata barroco, atiravam-se das pontes suspensas, não sem antes escreverem divertidas cartas aos juízes, expondo-lhes os mais variados motivos para abandonar esta vida.
Se a vida não se pode interromper, que mais restará? Só o sono. Logo a única coisa que se ganha em prolongar. Não é preciso chegar aos seis anos de idade para descobrir que mesmo os sonhos mais parados divertem mais que os pontos mais altos da realidade. Saem mais caros, reconheço. Mas a vida, em contrapartida, é demasiado barata para ser tão boa como nos querem fazer acreditar.