sábado, agosto 27, 2005

A ler

«A palha das revistas», artigo de Eurico de Barros, no DN. Aqui fica um excerto:

Uma pessoa compra uma revista - e já nem precisa de ser estrangeira -, põe-a debaixo do braço e os encartes caem como folhas secas num Outono ventoso, e sem a melancolia destas. Os encartes são a praga do comprador de revistas, e as especializadas abusam deles. Há uma de cinema, inglesa, que tem quase mais encartes do que páginas cupões de assinatura normais e especiais, clubes de DVD para as massas, DVD de "arte e ensaio", clubes do livro, catálogos de action figures, merchandising de O Caminho das Estrelas, que, no sofá da sala, fazem uma pirâmide de papel que albergava a múmia de um faraó anão, e ainda sobrava espaço.

[Paulo Ferreira]

Uma questão de inexistência

Todos os países têm os seus heróis e Portugal, sendo ainda um país, não constitui excepção à regra. O pior é que os heróis no nosso país não são heróis no verdadeiro sentido do termo. Isto é, não existem em Portugal muitas pessoas que tenham sido protagonistas de feitos de grande coragem política ou guerreira. Dir-se-ia que o povo português é um povo muito pouco exigente em relação às pessoas que idolatra.

O trabalho que a revista Sábado publicou esta semana sobre Jorge Coelho constitui um sério exemplo de idolatria excessiva do nosso povo em relação a personalidades que não têm alguns dos principais atributos, normalmente, exigidos a um herói. Com efeito, o tom elegíaco que os jornalistas da dita revista usaram para qualificar Jorge Coelho não é justificado, pelo menos se se tiver em conta a profissão do senhor em causa. Jorge Coelho está no mundo da política há muitos decénios, aliás, há decénios suficientes para que pudesse ter ultrapassado o simples estatuto da mediocridade. Não obstante o facto de Jorge Coelho ser actualmente dos políticos com mais influência partidária no nosso país, não se pode afirmar que o senhor seja um político influente no que diz respeito ao que ultrapassa a vida partidária. Ninguém no seu juízo perfeito poderá afirmar que o «braço direito» de José Sócrates tenha conseguido, com os seus feitos, modificar um pouco da trajectória trágica deste país. É um facto que Jorge Coelho conseguiu recuperar de uma doença gravíssima que, em muitos casos, se pode tornar funesta. No entanto, a superação de uma doença não pode encobrir todos os fracassos que uma pessoa enfrenta ao longo da sua vida. E os fracassos que Jorge Coelho enfrentou ao longo dos anos, sem os conseguir superar, foram muitos. Claro que é de louvar a existência de pessoas que conseguem ultrapassar certos problemas pessoais que, muitas vezes, dão felicidade e esperança a outras.

Poder-se-ia argumentar que o caso de Jorge Coelho é um caso singular, sem grandes precedentes na história recente do nosso país. Porém, e dado que o tom elegíaco é um tom que muito agrada à nossa imprensa, a mitificação de certas personalidades políticas, digamos, temporalmente esgotáveis, parece ser uma prática corrente da sociedade portuguesa. Não é saudável divinizar-se heróis fementidos, nem sequer é saudável fazer-se biografias de uma vida num tom quase etéreo, para, no futuro, perceber-se que os heróis mitificados nada fizeram de muito bom ou de excelente em função de um povo.

[Paulo Ferreira]

sexta-feira, agosto 26, 2005

Um regresso de viagem

Ao fim de umas horas de estrada digo «amo-te»,
e tu, com a mão esquerda, apoias o corpo ao muro,
com a mão direita seguras-me o ombro. Eu
concluiria desse facto que a minha própria vida
se iria passar sem direcção certa,
mas não foi assim, ou por outra,
tenho conhecido os aspectos sucessivos
de um problema então iniciado.
Por fim deixaste-me em frente ao café,
compraste cigarros ao balcão
e apanhaste o autocarro para casa.
Eu, voltando ao cais, passei o resto da tarde
a ver os pescadores, no intervalo da partida,
levantarem do mar as grandes âncoras esquizofrénicas.


Nuno Júdice, O Mecanismo Romântico da Fragmentação

[Paulo Ferreira]

Sobre a especificidade do amor

A restrita lógica do amor é incomparável. Na verdade, chamar-lhe «lógica» é uma traição ao próprio valor semântico da disciplina que tão rigorosamente tenta encontrar razões válidas para acontecimentos e métodos. A «causa das coisas», digamos. O amor, no entanto, não tem essa «lógica». Não tem «causas». Tem tempo e espaço, infinitamente abrangentes, mas nunca uma «razão de ser». Basta-lhe um objecto de amor, de desejo, de obsessão. Uma ideia fixa consciente.

Nem a religião se lhe compara, pois o «amor», essa palavra de um inflamado valor renascentista, é algo de muito mais incontrolável, enquanto a entrega a uma teodiceia beneficia de um sacrifício consciente e generoso a algo de improvável. Na obsessão de um homem por uma mulher (ou vice-versa, ou outros) não há fé, não há generosidade. Pelo contrário, há uma imensa noção de auto-flagelação masoquista a caminho da ruína. Como diz George Steiner, no seu Errata, «o amor pode ser o elo involuntário, culminando na autodestruição, entre indivíduos nitidamente inadequados um para o outro» - um diagnóstico cheio de um optimismo trágico que delicia quem está em consonância.

Aliás, para melhor completar o leque de provas da nossa genial, natural e humana irracionalidade, volto a um mestre. Diz, então, Steiner: «Esperei uma noite inteira debaixo de chuva torrencial para ter um vislumbre da amada a dobrar a esquina. Se calhar nem sequer era ela. Deus tenha piedade daqueles que nunca conheceram a alucinação de luz que preenche as trevas durante uma dessas vigílias».

[João Silva]

Eu, sempre...

Eu sempre a Platão assisto.
Pessoalmente, porém, e creia que não
Tenho qualquer insuficiência nisto,
Sou um romano da decadência total,
Aquela do século IV depois de Cristo,
Com os bárbaros à porta e Júpiter no quintal.


M.C.V. (Cesariny), O Virgem Negra

[João Silva]

quarta-feira, agosto 24, 2005

Melancolias II

Gostávamos genuinamente deles, éramos os seus maiores admiradores. Hoje, universitários e «cidadãos do mundo», só os usamos para descomprimir o nosso inchado ego e para comparar notas, estágios, profissões, ver quem chega mais longe. As conversas sem sentido que tínhamos intervalo após intervalo são substituídas por «conversas sérias» e as competições de banalidades deram lugar a competições eruditas e a um upgrade sofisticado e, dizemo-lo para nós próprios, bem-intencionado das conversas de café sobre a vida dos outros.
Num momento lamechas temos saudades de dizer aos nossos amigos aquilo que escrevemos em tempos nos cadernos de dedicatórias, quando partilhávamos os mesmos sonhos e éramos capazes de estar lá sempre. Hoje, acudimos a uma aflição, estamos lá nos grandes acontecimentos, é certo, mas já ninguém vê a amizade como profilaxia mútua dos problemas nem como presença nos pequenos momentos, os das conversas sem sentido.

[Bernardo Sousa de Macedo]

Melancolias I

[para a M.]

Fazemos projectos, preparamos reuniões, delineamos estatutos, agendamos «encontros informais», temos «almoços de trabalho», entramos na sacanice que criticámos nas tertúlias do mês anterior. Puxamos dos galões que não temos, fazemos o que era impensável há uns tempos – sala, cerimónia e graxa. Passamos a acreditar na equivalência dos termos «diplomacia» e «hipocrisia» – e cinicamente não nos importamos. O que escrevemos segue na íntegra a cartilha do texto-que-diz-tudo-mas-não-diz-nada (com o meu texto preto, eu nunca me comprometo…), aquela que passámos os dias, de forma quase farisaica, ortodoxa, a detectar nas sebentas, nas monografias e nos artigos dos nossos professores. Dizem-nos que é a vida, e nós não engolimos. Isso só acontece quando chega a nossa vez de o dizer aos outros. Ou seja, no segundo a seguir.

[Bernardo Sousa de Macedo]

terça-feira, agosto 23, 2005

A culpa II

Não querendo prolongar este pequeno debate com tão nobre amigo, gostaria de deixar ainda algumas considerações a propósito da hipotética demissão de Ian Blair, demissão essa que o Bruno não vê com maus olhos. Assim, e apesar de concordar com parte substancial dos posts do Bruno, resta-me dizer o seguinte: se se aceitar a demissão de Ian Blair, devido à ligeireza das suas políticas, espera-se que o seu substituto seja alguém com capacidade para fazer um bom trabalho de gestão e de coordenação da sua polícia. No entanto, é nesse ponto que julgo entrar em discórdia com o meu amigo. Com efeito, o Bruno, ao afirmar que a orientação política definida por Ian Blair acaba por pôr em perigo aqueles que visa proteger, deixa transparecer, na minha opinião, a ideia de que um possível sucessor de Ian Blair conseguiria evitar tragédias como a que se deu com a morte de Menezes. Porém, a minha opinião é a de que por melhor que fosse o sucessor de Ian Blair, nada garantiria que evitar-se-ia, no futuro, a morte de mais inocentes às mãos da polícia. Não nego que Ian Blair não deva ser responsabilizado, nem que o caso que envlove a morte do cidadão brasileiro não seja, digamos, insólito. Todavia, julgo que uma possível demissão seria apenas uma fuga ao real problema.

[Paulo Ferreira]

Erros e Responsabilidades

Pegando no título de um post do meu caro amigo Bruno, aproveito para me flagelar pelo facto de ter andado a escrever «vítima» sem acento. Parece que também eu me tornei, por momentos, vítima desta onda de loucura a que muitos chamam calor.

[Paulo Ferreira]

Anjo pornográfico


Nelson Rodrigues (n. 23-08-1912)

Faria hoje 93 anos.

[João Silva]
[Paulo Ferreira]

segunda-feira, agosto 22, 2005

Harrison Ford

Compreendo a aversão aos blockbusters. Partilho até desse tique de dividir entre «filmes bons» e «filmes para todos». Aliás, os anos 90 foram o terrível ponto de partida para tornar o cinema cada vez mais caracterizado pelas grandes produções, e cada vez mais procurado, apenas e só para ver o filme que vende mais. Um pouco como os livros. Infelizmente.
No entanto, ainda antes da terrível democratização dos blockbusters, esse tipo de filmes estava reservado a alguns bons realizadores que ainda conseguiam criar uma produção capaz de agradar mesmo aos mais pretensiosos. Para além dos realizadores (Spielberg, Lucas), um actor houve que se celebrizou por duas trilogias dos anos 70 e 80 que têm o minímo exigido para serem bons filmes: Harrison Ford.

Harrison Ford é mau actor. Penso que não há grandes dúvidas acerca disso. Penso que nunca um actor teve tanto sucesso e tantos êxitos tendo tão pouco a dar ao mundo do cinema, a não ser, talvez, um certo carisma. Inexplicavelmente, no entanto, não consigo dizer que não ao senhor, visto que os seus filmes brotam do chão quando menos se espera, instalando-se na televisão da sala - «Lá está ele outra vez... que remédio» - e, talvez imbuídos de mensagens ilegíveis, somos tentados a vê-los. O facto mais impressionante acerca de Harrison Ford é a forma generosa como se liga com o espectador, oferecendo-nos a capacidade de adivinhar tudo o que pensa e antecipar os seus diálogos, sem precisar de representar muito (na verdade, poupa-se, em geral, a esse trabalho maçante). Se isso é bom ou mau, não sei dizer. A verdade é que Harrison Ford tem sucesso.

Mas, dizia eu, Lucas e Spielberg trabalharam, nos anos 70 e 80, com Harrison Ford naqueles que foram os últimos bons blockbusters do cinema - embora, ao mesmo tempo, dando o exemplo para as trilogias e «mega-produções» de aventura que, terrivelmente, nos assombram deste 1990 -, ou seja, Star Wars (1977, 1980, 1983) e Indiana Jones (1981, 1984, 1989). Curiosamente, e tendo em conta a minha idade na altura em que os conheci, não consigo deixar de gostar destes filmes. É uma questão sentimental. Mesmo em relação a Star Wars não consigo fazer apreciações isentas acerca da sua qualidade cinematográfica, a não ser dizer que o papel de Harrison Ford lhe assenta que nem uma luva.
Mas o corolário de Ford vem com Indiana Jones. Eu, que nem gosto do género, considero-o um dos meus filmes favoritos, devendo muito, admito, à nostalgia do aparecimento dos filmes. Na verdade, Indiana Jones and the Last Crusade (1989) está entre os meus filmes favoritos de sábado à tarde, dispensando, no entanto, os restantes «êxitos» de Harrison Ford.

O segredo do seu sucesso está, penso eu, na estranha expectativa que nos traz nos filmes, uma sensação de que, a qualquer momento, vai tirar o chicote do bolso de trás. Assim, apenas pelo trabalho com os argumentos de Lucas ou com os filmes de Spielberg, Harrison Ford merece, da minha parte, um sincero e saudoso abraço.



[João Silva]

domingo, agosto 21, 2005

A culpa

Fazendo um prolongamento do meu post de ontem, o meu amigo Bruno acrescentou alguma informação essencial para a compreensão da polémica em torno de Ian Blair. Porém, e não querendo menosprezar um texto, sem dúvida alguma, mais esclarecedor que o meu, a certa altura o Bruno refere algo que me parece ser susceptível de levantar alguma discórdia :«Não querendo formar uma opinião definitiva, visto que muito do que se sabe decorre apenas de fugas de informação, excertos de um inquérito que mais tarde será divulgado, parece-me, no entanto, que há razões para, no mínimo, se colocar a hipótese de Ian Blair se demitir, sem que isso seja descabido de senso ou sinal de simpatias pouco abonatórias para quem as tem

Bem sei que, quem comete erros catastróficos como os que Ian Blair parece ter cometido, merece ser penalizado. No entanto, não posso deixar de afirmar que, na minha opinião, a demissão de Ian Blair serviria apenas para apaziguar os sofredores corações da opinião pública em geral e da família de Jean Charles de Menezes em particular. É óbvio que não se pode fingir que nada de grave aconteceu, já que morreu um inocente. Mas, parafraseando Ian Blair, a morte de Menezes foi uma em cinquenta e sete. Ou seja, passados alguns dias depois da morte de cinquenta e seis pessoas inocentes num funesto atentado bombista, morreu um outro inocente, ao que parece, vitima de negligência policial. Porém, mesmo que se prove que tenha havido negligência, é necessário que se compreenda que polícias também são homens e que, por conseguinte, também têm sangue, sentimentos, impulsos, entre outras coisas. Como já referi, Ian Blair não deve sair incólume da morte de Jean Charles Menezes, no entanto, não sei se será a demissão a punição ideal para um homem que, depois de tudo o que se passou, se mantém sereno e consciente do seu papel e do papel da polícia que orienta na sociedade britânica.

A hipotética demissão de Ian Blair, se não estivesse relacionada com a morte de um inocente, far-me-ia lembrar todas as hipotéticas demissões no nosso país, motivadas por rivalidades partidárias ou sentimentais. Ian Blair pode ser responsabilizado pela morte de Menezes, já que parece ter culpas no cartório. Todavia, mesmo que não houvesse culpa alguma atribuível a Ian Blair, exigir-se-ia, do mesmo modo, a demissão do chefe da Metropolitan Police. Isto é, a putativa responsabilidade de Ian Blair em todo este caso não parece ser o factor mais relevante em todo este caso. O factor mais relevante parece ser a morte de um imigrante inocente, que trabalhava para manter a sua família. É verdade que Menezes era um imigrante inocente, mas também é verdade que, à partida, todos os imigrantes são inocentes. Além disso, a polícia não pode adivinhar que um suspeito, mesmo que um falso suspeito, não se apercebeu de que está a ser seguido. Ora, a culpa de Ian Blair não é tida em conta pela maioria da opinião pública, nem pela maioria de outros estratos sociais com responsabilidades informativas ou governativas. O que parece contar nestes casos é a morte de um inocente e pouco mais. Ian Blair, embora pareça ter muitas responsabilidades na morte do cidadão brasileiro, está prestes a tornar-se vitima do sistema demissionário criado pelo mundo pacifista.

[Paulo Ferreira]

sábado, agosto 20, 2005

Muleta do homem-novo

Segundo uma notícia do Público, o chefe da Polícia britânica, Ian Blair, apesar da morte do brasileiro Jean Menezes, não pretende demitir-se do importante cargo que ocupa. Na minha modesta opinião, Ian Blair faz bem em não se demitir. Afinal, dadas as circunstâncias da morte do infeliz brasileiro, não se pode concluir que essa mesma morte esteja ligada à incompetência da polícia britânica. É certo afirmar-se que Menezes, que não era terrorista nem criminoso de outra qualquer espécie, foi baleado pela polícia. No entanto, é, de igual modo, certo afirmar-se que a morte de Menezes não se deveu a meros caprichos dos agentes da autoridade. Segundo consta, Menezes, quando foi mandado parar pelos agentes, desatou numa correria vertiginal, que acabaria, como se sabe, com a sua triste morte. Infelizmente, foi mais ou menos isso que aconteceu. É possível que a Scotland Yard tenha confundido o brasileiro Menezes com um «bombista-terrorista», como é afirmado na mesma notícia do Público. Porém, é sempre bom realçar o facto de não ser prática da polícia britânica alvejar possíveis suspeitos de crimes premeditados, até porque, neste momento, alguns dos principais suspeitos dos atentados de Londres encontram-se presos.

A novela que se tem feito à volta de trágica morte deste jovem brasileiro levanta algumas questões que, de tão óbvias, não precisam de ser respondidas. A primeira questão é a de se saber por que razão os meios de comunicação fazem questão de colocar ênfase na hipotética culpa de Sir Ian Blair, quando se sabe que morreram cinquenta e seis pessoas num funesto atentado bombista. A segunda questão está relacionada com a primeira e resume-se ao seguinte: sabendo-se que morreram mais de cinquenta pessoas num atentado bombista, não seria perigoso não alvejar um homem que foge à autoridade e que, possivelmente, poderia ter consigo uma bomba? Uma outra questão poderia advir da simpatia que a imprensa em geral dedica a todos aqueles suspeitos de crimes terroristas que vão sendo apanhados pela «lei», como se fossem todos vítimas deste sistema capitalista diabólico ocidental que mata aos milhões. Várias outras simples questões poderiam colocar-se, debalde.

[Paulo Ferreira]

A não perder

O artigo de Helena Matos no Público. Aqui fica um pequeníssimo excerto:

«Valha-nos o Elvis já ter morrido porque, caso ainda fosse vivo e trocasse os apelos de Love me tender por um qualquer “Love Africa”, acabaríamos a vê-lo entrar em Belém de fato-macaco, coberto de lantejoulas e quiçá a movimentar as ancas de modo a explicar por que lhe chamaram “Elvis the pelvis”.

[Paulo Ferreira]

sexta-feira, agosto 19, 2005

Histeria

Se bem me recordo, Pedro Rolo Duarte dizia há uns dias atrás que não se exige a um governante que seja histérico. Compreende-se o argumento, já que, no nosso modesto país, a principal forma de governar é, actualmente, alcançada através da histeria. Se existem dúvidas em relação a esse facto inapelável, atente-se na personagem de José Sócrates, actual primeiro-ministro em funções. José Sócrates permanece muito tempo em silêncio, no entanto, quando fala, fala revoltado, quando não aos gritos. Com efeito, José Sócrates tem pose de Estado quando está calado. Quando abre a boca, não é poeta mas é histérico. Ou seja, o silêncio que, por vezes, envolve José Sócrates, em vez de ajudar ao pensamento, cria uma revolta avassaladora que, em momentos de crispação, levam à explosão e, por conseguinte, à indignação. O pior é que este ciclo, que parece aparentemente ligado apenas a um homem, é o principal modo de fazer política no nosso país. Dir-se-ia que estamos em presença do conhecido mito do eterno retorno, que leva a que uma simples discussão parlamentar esteja constantemente a requerer a aparição de uma expressão como «defesa da honra».

[Paulo Ferreira]

Código do progresso III

«Todos sabem que o tabaco faz mal à saúde menos o técnico Carmona Rodrigues. Os lisboetas tinham direito de ser informados pelo capataz de Santana.» Pelo andar da carruagem (ou da carroça), ainda ouvirei Carrilho a proferir estas palavras.

[Paulo Ferreira]

Código do progresso II

Aguardo com ansiedade o dia em que Manuel Maria Carrilho criticará o «vereador» Carmona Rodrigues pela subnutrição dos pombos do Rossio.

[Paulo Ferreira]

Código do progresso I

Segundo uma notícia do DN, Carrilho critica a falta de apoio a idosos de Lisboa. Parece-me que essa pequena critica diz muito sobre a personalidade política do candidato do PS.

[Paulo Ferreira]

O «Luvas de Ferro»

Nelson Rodrigues escrevera, outrora, sobre um guarda-redes brasileiro, Jaguaré, que prometeu «defender um penálti» e, de seguida, «rodar a bola em cima do dedo» em tom de desafio. O problema foi que Jaguaré não conseguiu defender o dito penálti, por mais que uma vez, pois, segundo disse, deu-lhe «uma fraqueza nas pernas». No entanto, as desventuras de Jaguaré à beira do Campeonato Mundial de 1930 não são nada comparadas com outras figuras deste lado do Atlântico, em Portugal.

Também o Vitória de Setúbal teve os seus porteiros emblemáticos. Um dos mais conhecidos talvez seja o, já falecido, «nosso» Baptista. Um senhor que o meu avô teve o prazer de conhecer desde a juventude e que, através dessa mesma amizade duradoira, também eu vim a conhecer. Diziam os homens de outros tempos que Baptista não tirava os pés do chão para defender, dado o seu estilo de «guarda-redes gigante». Esqueçam as bolas que sobrevoam a cabeça de Vítor Baía. Baptista, guarda-redes do Vitória da (posso estar em erro) década de 40, cobria verticalmente a baliza no sítio certo, estando geralmente imune às gracinhas dos atacantes adversários que, talvez pela altura da queda do Muro de Berlim, aprenderam a fazer os infames «chapéus» aos guarda-redes - os truques «baixos» da democracia.

Mas, para além de saber sempre onde se encontrava a baliza, Baptista, dizem, tinha uma outra característica que o viria a imortalizar (e a remeter, infelizmente, ao esquecimento) ainda antes da sua morte. Uma característica que fazia dele um símbolo maior que qualquer Jaguaré: Baptista conseguia segurar e defender os remates dos adversários com uma só mão, à primeira, e fazia-o habitualmente. Dizia o meu avô que, caso a bola já viesse a descer, fosse com força, fosse sem força, Baptista a agarrava só com uma mão. Resta-nos apenas imaginar que a agarrava quase sem olhar, enviando-a de seguida para os avançados.

Mas não, história é história, e o «Luvas de Ferro», assim foi chamado Baptista, foi um dos melhores guarda-redes da história do Vitória. Ou não fosse o meu avô a garanti-lo.

[João Silva]

Ser português

Três homens atravessam Lisboa a pé. Perto de um restaurante, são interpelados por um senhor de avental e ementa:
-Bonjú messieurs! Vous...
-Não... somos portugueses.
-Ah, tudo bem! Uma dose dá para três! - sorri. Desce o pano.

[João Silva]

Nota II

Para dificultar ainda mais, outro blog de eleição acabou: o Aviz. Resta o Gávea e o trabalho hercúleo de nos trazer (a boa) literatura brasileira.

[João Silva]

Nota

Com o fim do Fora do Mundo acaba uma razão para ligar o computador.

[João Silva]

quinta-feira, agosto 18, 2005

Ciclo

O Fora do Mundo acabou.

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, agosto 17, 2005

Manuel Maria Carrilho e os pobres

Manuel Maria Carrilho, não contente com o seu papel preponderante em áreas como a filosofia, a política e a moda, deseja ser autarca. Pelo que se tem visto nas últimas semanas, o papel de autarca combina bem com a personalidade de Carrilho. Afinal, para se ser autarca não é necessário perceber de política, de filosofia ou de moda. No entanto, Carrilho, para além de perceber de política, de moda e de filosofia, tem vindo a demonstrar que possui uma capacidade enorme para muito falar sem nada dizer. Ou seja, o nobre génio português demonstra, a cada dia que passa, que reúne todas as qualidades exigidas a um autarca e mais algumas.

Uma importante muleta para o sapiente filósofo português em toda esta jornada tem sido Eduardo Prado Coelho, um homem profundamente conhecedor das matérias do coração e da vida. Com efeito, Prado Coelho, num gesto que parece nobre, prontificou-se, desde o primeiro dia desta batalha autárquica por Lisboa, a fazer propaganda sentimental a favor de Manuel Maria Carrilho nas páginas de um jornal habituado às frases oblíquas e violáceas do seu correspondente cultural. De qualquer forma, é provável que o jornal em questão não se incomode com as temáticas problematizadas por Eduardo Prado Coelho na sua coluna habitual, já que, como muito boa gente afirma, falar de Carrilho é falar de Cultura e falar de Cultura é falar de Carrilho.

Pelas frases soltas que se vão apanhando de Manuel Maria Carrilho, ressalta a ideia de que o candidato à cadeira de Santana Lopes preocupa-se deveras com os pobrezinhos. Não sei se motivado por José Sócrates ou se motivado pelo estado em que se encontra o país, Manuel Maria Carrilho pretende melhorar a qualidade de vida dos lisboetas. Para isso, diz Carrilho, é necessário afastar o «técnico» Carmona Rodrigues dos comandos da capital portuguesa e fazer com que «o Túnel do Marquês» (vou citando certos lexemas abundantes no candidato autárquico) acabe na Rua Castilho. Contudo, o processo chave para o desenvolvimento de Lisboa é o cosmopolitismo. Não sei ao certo se Manuel Maria Carrilho pretende fazer de Lisboa a capital industrial da Europa e, por conseguinte, atrair meio mundo aos seus portos ou se Carrilho ambiciona provocar um incremento avassalador no que respeita à criação artística no nosso país em geral e na capital em especial. Porém, o que é certo é que estas são algumas das ideias revolucionárias que, provavelmente, mudarão por completo o panorama civilizacional de toda a pátria. Não duvido que a arte matará a fome, nem que Portugal recomece a apostar na caravela.

A única objecção directa que coloco à candidatura de Manuel Maria Carrilho ao município de Lisboa reside no facto de Maria de Belém aparecer na televisão e em vários cartazes de campanha ao lado de Carrilho. É assaz constrangedor ver uma figura tão brilhante e tão cheia de ideias aparecer ao lado de uma senhora que gosta de se pavonear no seu carro em direcção ao infinito. Mas talvez isso seja sinal que Carrilho é um homem de sentimentos, um homem que, mesmo apreciando Lacan, dá uns pulinhos em Dan Brown.

[Paulo Ferreira]

segunda-feira, agosto 15, 2005

Perfulgência

Com um simples movimento de anca, Ofélia, que não era libertina nem comediante, tocava no coração de uma multidão.

[Paulo Ferreira]

Acções que fazem sentido

«Ana guiava habilmente, divertindo-se a aflorar, com os indicadores automáticos de direcção, as orelhas das crianças que seguiam pelo passeio. Para isso tinha que passar a rasar pela beira do passeio, e arriscava-se, de um momento para o outro, a esfolar a pintura dos pneus, mas lá se ia safando sem uma arranhadela. Infelizmente, vinha a passar uma menina de nove a dez anos, com uns abanos extraordinariamente grandes: o indicador bateu em cheio no lóbulo da orelha e quebrou-se logo. A electricidade começou a pingar em gotas contínuas pela ponta do fio arrancado; o amperímetro baixava de modo inquietante. Rochela sacudiu-o, sem qualquer resultado. A temperatura de combustão diminuiu e o motor enfraqueceu. Ana parou uns metros adiante.»

Boris Vian, O Outono em Pequim

[João Silva]

domingo, agosto 14, 2005

Com minúscula

O letra minúscula, de José Mário Silva, foi adicionado aos links aí do lado.

[João Silva]

A invenção

Bloch

Até ao dia em que decidira amar, a vida de Bloch fora simples, muito simples. Dir-se-ia que a vida de Bloch, até ao momento em que certas verdades eternas e imutáveis deixam de o ser, fora uma vida construída em função de certos objectos não muito complicados. Uma caneta e uma folha de jornal rasgada eram, com efeito, a essência da vida de Bloch.

A decisão de amar foi fácil para Bloch. Afinal, havia muito tempo que Bloch se cansara dos dias em que a modorra se confundia com o animal. Bloch precisava de tempestade. Bloch precisava de movimento. «Sem movimento, não há amor», escrevia Bloch constantemente na sua folha de jornal rasgada. O mais difícil nesta história foi, para Bloch, conseguir arranjar um objecto de adoração. Era um facto que, sendo um animal repugnante, Bloch se sentia desprezado pelo mundo e, especialmente, pelas mulheres. Bloch era um animal repugnante.

Natália

Até ao dia em que decidira partilhar os seus encantos com um animal repugnante, Natália fora uma mulher feliz, muito feliz. A felicidade deixou de ser uma realidade para Natália no momento em que começou a pensar. O animal feio, viscoso e, claro, repugnante que era Bloch, não somente era dotado de qualidades grotescas como também pensava. Natália, a mulher que vivera para o sexo num passado não muito distante de Bloch, tornou-se numa mulher frígida.

A decisão de partilhar os seus encantos e, de certo modo, os seus sentimentos com Bloch não foi fácil para Natália. Natália era o movimento. Bloch era uma pedra. Bloch queria amar. Para Natália, a quietude de Bloch representava o amor do mundo. Para Bloch, a sua quietude era sofrimento. Natália pensava que o amor se guardava em pequenas caixinhas de plástico, ao lado das jóias. Natália gostava de sexo.

Natália e Bloch

Até ao dia em que um homem desejou amar e que uma mulher desejou ser amada, o mundo não viveu de sonhos. Depois, as coisas mudaram: atingiu-se o amor. Os gemidos desvairados de uma mulher ninfomaníaca e os sonhos deprimentes de um verme acabaram. Bloch, que era incrivelmente feio, tornou-se, com o advento do amor, um pouco belo. Natália, que confundia, na sua mente sempre complicada, sexo com sentimentos, descobriu que só começou a amar no dia em que beijou um homem que cheirava a tudo menos a sexo.

A felicidade não existe. O amor não existe. Bloch não existe enquanto ser sentimental. Natália também não. Por conseguinte, estes dois seres viveram uma grande ilusão, que só não teve consequências trágicas porque Bloch era um impotente no seu máximo esplendor e Natália uma grande mentirosa, que trocou o movimento (sexo) pela piedade.

[Paulo Ferreira]

sábado, agosto 13, 2005

Homens em guerra

A guerra é, certamente, um dos espectros mais profundos do ser humano. Aliás, a guerra é um «modo de convivência» que tem origem, não só na convivência entre os homens, mas na própria natureza do ser humano. E, mais do que pertença dos humanos, tornou-se corolário do Homem e da sua sobrevivência.

O próprio Professor Michael Howard, eminente historiador militar, no seu The Invention of Peace, diz acerca desta necessidade imperiosa de triunfar sobre os outros: «na história da humanidade houve sempre a divisão entre aqueles que acreditam que a paz deve ser preservada e aqueles que acreditam que ela deve ser conquistada». Por oposição às mentes iluminadas da idade contemporânea, a era medieval foi pródiga em germinar conflitos à larga escala, culminando, na viragem de um milénio, nas grandes campanhas em nome de Deus. Howard cita Santo Agostinho, mais convicto na aceitação da guerra como instrumento «secular» do Todo-Poderoso: «a guerra, ensinava ele, tinha que ser aceite como parte da condição decaída do ser humano, simultaneamente cidadão da Cidade de Deus e de um reino terreno que, apesar de todas as suas imperfeições, desempenhava um papel essencial no propósito divino e que por isso tinha o direito de impor as suas próprias condições. A guerra contra os inimigos do cristianismo era inteiramente justificada (...) e mesmo a guerra interna entre cristãos devia ser aceite como parte dessa condição humana».

Da Baixa Idade Média surgiram as primeiras conclusões: a mesma Igreja por quem foi ensaiada a hipótese de alianças militares supra-nacionais tornou-se a maior (única) crítica da frequente necessidade e ocorrência de conflitos. O próprio Thomas Hobbes viria, mais tarde, a formular uma visão de sociedade à margem da qual sobrevivia o estado natural do Homem: a guerra, que, juntamente com a Igreja e os casamentos reais, representava o papel de mediadora abstracta das relações entre países, entre coroas, quando ainda não se sonhava em autoridades ou tratados aceites e protegidos - a Liga de Nações de Kant.

Por mais que básica que seja a guerra - a realmente «selvagem», «bárbara» e «irracional» atitude que os pacifistas, não sem razão, reprovam -, esta é a última forma de conversação entre homens. Ironicamente, sempre foi considerada a forma mais segura de salvar vidas: enfrentando uma ameaça antes que esta ameaçasse o «principado». Simplesmente, como tudo o resto, popularizou-se, democratizou-se, cada vez mais, até passar de uma função reservada a uma elite para homens normais. Infelizmente, tal como os últimos dois séculos ilustraram, também a morte, pouco gloriosa, no campo de batalha se democratizou.

[João Silva]

sexta-feira, agosto 12, 2005

Fantasmas

Dormir todos os dias na mesma cama velha, entre lençóis sujos, era o destino de Sebastian. Minto: dormir não passava pelo destino deste velho e desgraçado homem. Sebastian não dormia porque tinha o estômago constantemente apertado, porque sentia fome. Sebastian tentava dormir. Sebastian não procurava alimentos. Sebastian era uma excepção à regra. O predador, quando sente o estômago apertado, procura a sua presa. Sebastian não procurava nada. Sebastian era fraco: tinha amor à espécie. Sebastian era ignorante: desconhecia a existência de outras espécies animais para além da sua. Sebastian não se alimentava porque amava o Homem quase ao ponto de por ele morrer. Sebastian não se alimentava porque não sabia que, para além do Homem, existiam espécies animais a que o dente humano dá especial predilecção. Em todo o caso, Sebastian não dormia, mas tentava. Era uma tarefa difícil dormir de estômago vazio. Para Sebastian então era impossível. «Há muitos fantasmas», dizia o velho desgraçado.

[Paulo Ferreira]

O mundo dos heróis II

O meu mundo, sem heróis, não seria o mesmo. Talvez fosse melhor, talvez fosse pior, não faço a mínima ideia. O certo é que, quando se é criança, idealiza-se o «herói» de uma forma quase romântica. Imagina-se que os heróis são perfeitos, que os heróis são dotados de um número infinito de qualidades e que são dotados de um número reduzido, ou inexistente, de defeitos, o que é bastante compreensível, já que os heróis, para uma inocente criança, são isso mesmo: heróis, perfeitos, sem nódoas no casaco ou defeitos físicos que possam alterar o seu estatuto.

Nos dias de hoje, Napoleão Bonaparte assemelha-se, a meus olhos, a outros tiranos que o mundo contemporâneo hoje conhece. Napoleão é-me tão indiferente quanto Estaline, ou como diria um vetusto senhor, «Zé dos Bigodes». Mas nos tempos de criança era a pose de líder e o general que havia em Napoleão que me fascinavam, não o político, não o homem megalómano. Com efeito, nos tempos em que as cadernetas dos cromos da bola eram abundantes nas minhas gavetas, Napoleão era a pose divina, era o homem que se coroava perante uma Europa estupefacta, era a perfeição.

Porém, com o passar dos anos, a mente infantil vai-se desvanecendo da alma do ser humano. É com a evolução mental e com a aprendizagem escolar e caseira que os mitos se vão quebrando e que os heróis vão desaparecendo. À medida que a biblioteca pessoal vai aumentando, vão diminuindo certas paixões irracionais. É por isso que Napoleão Bonaparte já não figura entre os meus heróis. Napoleão hoje é o tirano, o louco, o megalómano, o homem que morreu em santa Helena com um cancro no estômago. Por outro lado, e seguindo a linha do post anterior para não perder demasiado tempo com outras personagens históricas, Lord Nelson nunca teve, a meu ver, a presença divinal de Napoleão. Pelo contrário, sempre tive a ideia de que Nelson, à semelhança de outros senhores distintos da sociedade britânica, primava pela sua humildade e pela sua coragem. Napoleão também era corajoso, mas foi Nelson quem, depois de ter perdido a visão de um olho e de ter perdido o braço , se não estou em erro, direito em combate, continuou a combater. Aliás, foi a combater que Nelson perdeu a sua vida, mais precisamente em Trafalgar , no ano de 1805, a lutar contra espanhóis e, especialmente, contra franceses. Napoleão, pelo contrário, mesmo que sempre se tenha apresentado com uma dignidade digna das suas funções, não tinha a coragem de Nelson. A dignidade de Napoleão pode ser encontrada no momento em que Napoleão, a Julho de 1915, a bordo do navio inglês Bellerophon, se entrega ao jovem Capitão Frederick Maitland com a máxima altivez. É , em certa medida, de louvar o facto de Bonaparte não ter fugido para os Estados Unidos com o seu irmão Joseph. No entanto, Napoleão morreu na decadência, subjugado pelos seus principais inimigos, os ingleses; morreu a sofrer de uma doença, digamos, hereditária na pacatez de uma ilha do Atlântico. Já Nelson, o homem permanentemente ferido, quase incapacitado para o combate, morreu como morrem os heróis: a combater, a lutar pelos seus. Talvez seja também por isso que ainda hoje se celebra a existência de tão importante figura britânica.

Muitos outros heróis, antigos e actuais, poderiam ser acrescentados a este pequeno devaneio. Porém, o que importa concluir com estes breves exemplos é de muito simples compreensão, facto que me dispensa da elaboração de uma longa lista. O que importa concluir é, então, o seguinte: o herói nem sempre está ligado ao sonho e às divagações infantis e adolescentes que, por serem demasiado imaturas para a compreensão de certas realidades, montam o herói perfeito. Porém, o que tem piada nos heróis, nos verdadeiros heróis, é precisamente o contrário. Ou seja, o que tem piada é conceber heróis humanos como nós, com os mesmos problemas físicos e morais que nós, mas que, não recuando perante as centenas de limitações inerentes à espécie, combateram incessantemente os seus inimigos, já que a última rendição possível, para eles, para os verdadeiros heróis, só pode ser a morte.

[Paulo Ferreira]

Andrómeda

Na véspera de te suicidares, levaste-me para o parque sem guarda.
Como sempre quando me querias contar algo, levaste-me lá de noite. Para o sítio onde as luzes artificiais não nos encontravam. Onde tu podias mentir com quantos dentes tinhas, sabendo que os teus rubores de mentira inocente estavam a salvo do reflexo pálido da cassiopeia.
Sempre lidaste bem com a Natureza, mas os homens, dizias, destruiram a mulher que eras. Como sempre, acabaste por nunca falar do que querias. Como sempre, o esconderijo das luzes artificiais ocultou os teus fantasmas. Um dia depois, ocultava o teu corpo frio e sem vida, adormecido nas folhas secas como se sonhasses.

[João Silva]

Relógios

Cada dia, o teu ser rouba-me um pouco da alma, cada vez mais diluída nos teus refreados desejos.
Por cada vez que preenches o imaginário de mais um homem, há uma ínfima parte de mim que sufoca uma criança em pranto, como se mais ninguém tivesse direito a um desejo egoísta.
A cada manhã em que te deixas deslizar para dentro dos teus melhores sapatos, a caminho de um encontro vulgaríssimo, algures um homem deixa-se ficar na cama – decidindo se é hora de partir.
Por cada momento inconsciente teu, um ponteiro de relógio dá uma volta em sentido contrário.

[João Silva]

Princípios

«Após sair do Governo e regressar ao Banco da Patagónia, agora como administrador, Miroslav Pielsen, em momentos mais libertos, explicava como tinha conseguido que o Banco emprestasse dinheiro a outros para comprarem o que era seu, ganhando duas vezes, primeiro com a venda e depois com os juros. Sempre que lhe falavam em "princípios" respondia assim: "Princípios? Estão muito desvalorizados face ao dólar."»

-João Miguel Tavares, Diário de Notícias 12/8/2005

[João Silva]

Queda


Marc Chagall, A Queda do Anjo

[João Silva]

quinta-feira, agosto 11, 2005

O mundo dos heróis

Desde muito cedo que tenho por hábito idolatrar certas figuras históricas que, pela sua bravura e coragem, foram admiradas e odiadas pelos seus contemporâneos. Julgo que esse hábito nunca me influenciou muito em termos de preparação para o mundo. Não foi por ter admirado, na infância, figuras como Napoleão Bonaparte que me tornei um indivíduo nefasto para os que me rodeiam. Talvez isso seja mentira, mas também não é isso que interessa. A verdade é que tenho heróis desde muito cedo, muito embora sempre me tenham dito que ter heróis é mau. Pois bem, eu tenho heróis. Alguns perderam-se, outros ficaram, embora, com o tempo, os que ficaram tenham ganho a meus olhos uma imagem mais humana.

Napoleão Bonaparte, o homem que saiu da Córsega para tentar, de forma megalómana, tentar fazer uma Europa à sua medida, era visto por mim, na infância, apenas como o homem perfeito e triunfal que aparecia nos retratos de Antoine-Jean Gros ou de Jacques-Louis David. Quando pensava em Bonaparte, pensava no herói que se tornou Imperador. Não me passava pela cabeça que Napoleão não tivesse características físicas heróicas ou que a França do século XVIII e XIX fosse um perigo para o resto do mundo. Na minha cabeça de criança, Napoleão Bonaparte era tão perfeito quanto uma escultura romana. Porém, ao ler Paul Johnson percebi que a minha admiração por Napoleão não poderia ser duradoura.

Uma outra admiração que mantinha nos tempos de meninice era em relação a Lord Nelson. Com efeito, para mim, Lord Nelson era simplesmente um outro herói que rivalizava com a França,em geral,e com Napoleão Bonaparte,em particular. Contudo, com o passar dos anos, ao mesmo tempo que o meu amor pelo derrotado de Waterloo se desvanecia, ia apreciando cada vez mais a vida de um dos meus heróis de hoje que é o almirante britânico Horatio Nelson. Quando me lembro da figura heróica de Lord Nelson, lembro-me da sua postura destemida nos mares, quaisquer que eles fossem. A imagem de Lord Nelson a romper a linha de navios espanhóis e franceses em Trafalgar no seu Victory, deixa-me, ainda hoje, fascinado. Ao contrário de Napoleão, que deixou a minha admiração enterrada com ele em Santa Helena, Nelson faz com que, de vez em quando, ainda me lembre de que um dia houve um homem que não tinha um braço e que era cego de um olho, que lutou até à morte em Trafalgar pelos seus valores e pelos valores de toda a sua civilização, civilização essa que, infelizmente, nunca chegou a ser a nosssa.

[Paulo Ferreira]

quarta-feira, agosto 10, 2005

Cinzas

Éramos novos e, por isso, tínhamos a noção de um perfeito autodomínio. Até as horas pareciam mais longas quando nós o queríamos. Nada poderia correr mal, e era nisto que acreditávamos.
Dos dois, era eu quem se atirava de cabeça, pensando em não pensar. Deixava para ti as decisões difíceis, aquelas que nada decidem quando um amor precisa de rumo. Aquelas que de nada valem quando damos por nós a procurar a infinitamente espelhada definição de amor.
Enfim, não pensávamos em divisão de tarefas e o cinzento juntava-nos em paz. Hoje nada resta. Apenas te espero para morrer.

[João Silva]

Ensaio

Um dia liguei-te e não atendeste. Percebi, pela primeira vez, o que seriam os meus dias quando te fosses embora.

[João Silva]

Pedro, lembrando Inês

Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.


Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês

[João Silva]

terça-feira, agosto 09, 2005

Qualidade política

Maria de Belém Roseira, conhecida deputada do Partido Socialista, partilha com os leitores da revista Sábado alguns dos seus vícios. Dentro de um número significativo de vícios, destacam-se dois ou três, que, pela clareza e pela simplicidade de resposta, fazem com que o público em geral consiga perceber um pouco dessa classe elitista que é a classe política portuguesa. Assim, um dos primeiros vícios de Maria de Belém Roseira é «ler». Citando a deputada, «Passo o ano a ler relatórios e documentos de estudo. Só durante as férias é que consigo ler como mais gosto: para me divertir. Também releio. Agora, pela segunda vez, estou a ler o Código da Vinci.» Um outro vício de Maria de Belém Roseira é o de «navegar na Internet». «Tenho tendência para visitar sítios técnicos, mas também procuro outras coisas. Não tenho é tempo para blogues: são só para quem tem uma vida organizada. Ou para quem tem pouco que fazer.», afirma a consagrada deputada. Outro vício a que se pode dar destaque é ao de «andar de carro sem destino». Afirma a deputada, entre outras coisas, que sair sem destino é algo que lhe dá imenso prazer.

Ora, destes três vícios poderiam retirar-se várias conclusões. Porém, não é meu objectivo desempenhar o papel de censor cultural, até porque ainda me faltam muitos anos para ter legitimidade para falar sobre o que quer que seja. No entanto, não posso deixar de afirmar que Maria de Belém Roseira, através de uma pequena secção de revista, consegue ser o exemplo máximo de toda a cultura política nacional. Com efeito, Maria de Belém, ao afirmar que anda a reler Dan Brown, ao confessar que não tem paciência para blogues (não gosta de perder tempo a ler coisas menores, calculo eu) e ao afirmar que gosta de andar de carro sem destino, consegue desmascarar toda uma teia política. Ou seja, Maria de Belém, à semelhança dos seus colegas políticos, não tem tempo para ler livros decentes, nem tem tempo a perder com futilidades, apesar de ter tempo para andar de carro sem destino. Acontece que Maria de Belém, tal como a maioria dos seus colegas de profissão, também não tem tempo para fazer política, nem sequer tem tempo para pensar que nunca fez nada de decente pelo seu país. Talvez Maria de Belém ganhasse um pouco se despendesse algumas horas do seu precioso tempo a ler futilidades e ninharias que fizessem com que ela própria e os seus colegas de profissão percebessem aquilo que representam no mundo político, em termos de decência, de profissionalismo e de qualidade.

[Paulo Ferreira]

segunda-feira, agosto 08, 2005

Trimalquião

Deitado na praia, um homem barrigudo olha para a menina que passa e, num rasgo de felicidade, dá um arroto monumental.

[Paulo Ferreira]

Ascilte

Um amigo olha-se a uma montra e afirma que, com aquele corpo, não precisa de ler. Baixei a cabeça. Nunca tive coragem de lhe dizer que na Grécia Antiga os jovens musculados eram sodomizados pelos filósofos.

[João Silva]

Porquê não ler Conrad?

Ler Conrad sob o calor de Agosto faz-me duvidar da minha própria sanidade mental.

[João Silva]

Machismo cristão II

A pedido de amigos, o pecado volta a ter cara.


Ludivine Sagnier

[João Silva]

Machismo cristão I

Alguém escreve, num motor de busca, as palavras-chave «constantino Jesus maria madalena machismo novo testamento» e encontra este blog.

[João Silva]

domingo, agosto 07, 2005

António Marujo da Silva Pereira

António Marujo da Silva Pereira é um homem sem qualidades. Para as mulheres, António Marujo da Silva Pereira é conhecido por António e vive na zona rica de Lisboa. Para os homens, António Marujo da Silva Pereira é conhecido por «Zá» e vive nos confins de uma aldeia chamada Labrujeira. António Maria da Silva Pereira, ou «Zá», trabalha cinco dias por semana na construção civil. Com efeito, é às Segundas, Terças, Quartas, Quintas e Sextas-feiras que se pode encontrar este nobre pulha nas funções de trolha. Aos Sábados e Domingos, António Marujo da Silva Pereira desempenha outras funções. Aos Sábados e Domingos, António Marujo da Silva Pereira trabalha nas pistas de dança.

Este nobre cidadão da Labrujeira, devido ao facto de trabalhar para a dança, tem sucesso com as mulheres. As mulheres também têm sucesso com o nobre cidadão da Labrujeira. O cabelo ruivo, gasto pelo cimento e pelo sol, dá a Zá um ar de marinheiro, que o torna bonitão. Os amigos de Zá da Labrujeira confirmam-no (Zá só tem amigos na Labrujeira): Zá é bonitão. As amigas de António Marujo da Silva Pereira de Lisboa acrescentam que ele tem um cabelo lindo (António Marujo só tem amigas em Lisboa).

António Marujo da Silva Pereira vive na Labrujeira mas aos fins-de-semana vai para Lisboa no seu carro aprumado. António Marujo da Silva Pereira é louco por discotecas, vive a pensar em discotecas, trabalha para poder frequentar discotecas. O patrão de António Marujo da Silva, o «Sê empreiteiro», diz que Zá é um vaidoso de primeira. Quer despedi-lo porque, como ele próprio diz, em firmas decentes não entram paneleiros. Zá não é homossexual, embora diga muitas vezes que é um homem-sexual. Caleta, amigo de Zá, comprende perfeitamente a dancing queen da Labrujeira. É por compeender Zá na perfeição que Caleta, homem com deficiências na fala, afirma que Zá não é homossexual, ou, como o proprio Caleta diria, « Zá não é panueiro, sósse! Zá só quer rranjar moada em Lesboa.» (Zá não é paneleiro, sócio! Zá só quer arranjar namorada em Lisboa).

Zá tem namorada em Lisboa. Aliás, Zá tem várias namoradas em Lisboa. Por incrível que pareça, as namoradas de Zá de Lisboa não se podem comprometer com o jovem trolha porque já são todas comprometidas. Zá sabe disso. É por isso que é um pulha.


[Paulo Ferreira]

Tempo

Houve um tempo em que seria possível sussurrar-te a canção dos apaixonados ao ouvido. Houve um tempo em que o silêncio era apenas um conceito aplicável a indivíduos com carências livrescas. Houve um tempo em que o amor era um sentimento em constante devir. Houve um tempo em que a conjugação dos teus lábios com as tempestades violáceas formava a queda de um anjo dos céus. Houve um tempo em que o tempo não parava. Houve um tempo em que tu, sem me dares tempo de resposta, abandonaste aquele tempo de descrições sentimentais, deixando-me a sofrer a eterna agonia dos amantes desencontrados. Nesse tempo antigo, houve um homem que viveu tempos de felicidade. Nesse tempo, houve um homem que ficou preso ao tempo, sem saber o que fazer ao tempo.

[Paulo Ferreira]

Viagem

Estendesses-me tu a mão de um mundo negro sem portas nem perdão, mesmo assim não me deteria onde estou.

[João Silva]

Sonho

Voltaste da sombra para o meu imaginário, onde todas as luzes de todos os candeeiros te vão seguindo os passos, votando à escuridão o que pudesse daí restar.
Os cenários que visitas são conhecidos: O jardim onde eu comera flores apenas para te satisfazer a curiosidade. A loja onde surripiei o que querias ter, e mesmo assim, distraída, não viras o acto ostentatório que motivaras.
Por fim, o meu quarto. E o teu quarto. E a flor que nunca foi digerida, cuja existência vai equilibrando um revólver.

[João Silva]

1945

Entre 6 e 9 de Agosto de 1945, foi levada a cabo a acção dos Aliados mais decisiva de toda a II Guerra Mundial. Ou seja, de todas as operações militares, foi esta operação - as duas bombas atómicas largadas em Hiroshima (dia 6) e Nagasaki (dia 9) - que elevou o preço das vidas de soldados. Trouxe, em definitivo, questões para as quais há tantas respostas como pessoas: qual o preço que está disposto a pagar para impedir que mais soldados morram em vão, se é legítimo sacrificar outros em nome dos nossos, se se pode ganhar uma guerra desta forma. Enfim, tudo questões para as quais a moral cede espaço para o convívio com a segurança. Questões para as quais não há respostas ideológicas.


[João Silva]

sábado, agosto 06, 2005

Sobre livros

«O livro foi uma das principais vítimas desta nova escola. Todo o sistema educativo parece hoje concebido para reduzir ao mínimo a consulta do livro. Pela profusão de imagens e de fórmulas coloridas, os próprios manuais escolares fazem um esforço para se parecer menos com livros; e, pela arte das citações simplificadas e simplistas, para os substituir. Elogiam-se os métodos de ensino que dispensam o livro, das brincadeiras aos passeios, dos trabalhos de grupo aos projectos, sem falar nos resumos fotocopiados. Apresenta-se o computador como um sucedâneo do livro. Isenta-se qualquer aluno da leitura morosa e concentrada. Chega a lançar-se o anátema contra os trabalhos de casa, de que a leitura de livros faz parte essencial. Depois de se ter considerado, justamente, que a posse de livros e a existência de bibliotecas em casa da família eram traços de desigualdade, quase se concluiu que um ensino sem livros era a melhor maneira de combater essa desigualdade! Fez-se do livro um objecto arqueológico de atávicas reminiscências, a fazer pensar no pior de uma organização opressiva e repressiva.
(…)
Acontece que uma escola sem livros, que admito perfeitamente poder existir, é uma escola desumana e de desprezo pelo património cultural e científico da humanidade. É uma escola que, a pretexto de igualdade social, provoca mais desigualdade, pois que faz do livro um bem de casta e um hábito de elite. E é sobretudo uma escola que, a pretexto do combate contra a «cultura livresca», legitima esta detestável forma de ignorância (…).»


António Barreto, Tempo de Incerteza



«(…) Quando lhes perguntam, o que vais fazer com tanto tempo livre nas férias?, os portugueses mentem. Mentem com quantos dentes têm na boca. E dizem que vão ler. Que vão ler aquilo, aquelas coisas, o Homero traduzido em português dans le texte e misturado com a areia da praia, o Dan Brown em inglês dans le texte caído no bordo salpicado de cloro da piscina, e quiçá um pesado romance do século XIX, que andam para «reler» (outra mentira, mais fina, é a dos que deixaram de ler, apenas relêem) há anos, que pesa pelo menos 489 gramas e que eles tentarão equilibrar numa mão, enquanto seguram o toldo do vento e a trela do cão na outra. Mentem e continuam a mentir, faz parte do sistema, está-lhes, como dizia o povo, na massa do sangue. Porque, se os portugueses lessem tanto como mentem, éramos o povo mais culto, mais letrado, mais lido e relido da Europa, quiçá do mundo inteiro, e não somos. Não somos não.»


Clara Ferreira Alves, Única, 30 de Julho de 2005

sexta-feira, agosto 05, 2005

Praia da Cabidela

Na praia fluvial de Adaúfe, perto de Braga, há porém quem não se aborreça de ficar assim, a olhar para ontem. Climério, carpinteiro de profissão, almoçou ainda há pouco e estende o protuberante abdómen ao sol. A digestão entorpece-lhe a lucidez, os movimentos tornam-se lentos. Não tarda e adormece, o palito enfiado na boca, a feijoada e o tinto a fermentar sob o braseiro da uma da tarde. A família contorce-se de gozo ao perceber que Climério é agora o alvo do fotógrafo, Ó Climério! Olha os senhores, Climério!, Ai que rica figura, valha-te Deus!

Sónia Morais Santos, Dna

[Paulo Ferreira]

Do rodopio

Mais um Gomes ou mais um Vara enfiado num tacho de milhões e a úlcera rebenta-me.

João Miguel Tavares, DN

[Paulo Ferreira]

Emprestar livros

Exceptuando perdas irrecuperáveis ou desencontros sexuais, emprestar um livro talvez seja o acto mais perturbador da mente de um homem quase sem vida, isto é, sem praia, sem chinelos e sem cartão VIP para o Mussulo. Aliás, na maior parte das vezes, quem requisita um livrinho a biblioteca tão humilde como a minha é, normalmente, alguém que já gastou todo o seu dinheiro, precisamente, em chinelos, óleo bronzeador (segundo alguns, «óleo de coco») e saídas à noite («sair à noite» sempre me evocou a imagem de Jack Nicholson em Wolf). Portanto, visualizando mãos suplicantes, banhadas em creme bronzeador, sebosas de praia e sal, folheando livros importados com o pé-de-meia de um pobre, é natural que me sinta ameaçado quando alguém se aproxima das minhas estantes.

Mas vá-se lá explicar a situação a outra pessoa. Imagino a dificuldade de tentar explicar a alguém que emprestar um livro, é como ter um filho que dorme fora. Todos os outros que ficam em casa são rapidamente olvidados perante a inquietação que é ter o «pequeno» fora de casa. É preciso conhecer como a palma da mão o sujeito que alberga o meu livro/filho na sua casa. É preciso saber onde lê, por onde andam as suas mãos, quanto tempo demora a ler, se se esquece ou não das coisas em sítios inóspitos ou, perigo dos perigos, se é um «jovem poeta» que se senta no chão e faz rodar o livro por dez marmanjos para todos lerem uma passagem (normalmente, um poema lírico que lhes soa a crítica à política externa norte-americana). Livro que «dorme fora» é o primeiro passo para que tal situação se comece a repetir cada vez mais. Indubitavelmente, os efeitos são sempre os mesmos: o sono torna-se mais arrastado quando um livro não está em casa.

[João Silva]

Mulholland Drive

Segundo a RTP, há zonas críticas em Portugal nas quais incêndios ameaçam algumas localidades. Segundo a SIC, enquanto um homem corre, de câmara ao ombro, pelo meio das chamas no sítio mais escurecido das zonas de incêndio, «a situação está incontrolável». Segundo a TVI, «está tudo a arder».

[João Silva]

Imagens de Jünger

«Vivia numa febre constante; tinha abandonado o hospital militar porque a posição horizontal se me tornara insuportável, mas estava bem longe de estar curado. De manhã, ainda tossia de vez em quando sangue para o meu lenço, esforçava-me no entanto por não o ver. Fumava cigarros fortes, dos quais tirava o primeiro de cima da mesa de cabeceira, logo ao acordar, e o vinho subia-me facilmente à cabeça.
De noite, acordava sobressaltado com tiros, pois no bairro cheio de ruelas em que eu alugara uma casa, havia prisões e eram feitas tentativas para libertar os presos. Num quartel perto trabalhava um conselho de guerra que todas as manhãs mandava fuzilar atrás de um monumento os saqueadores que haviam sido apanhados durante a noite. Os filhos da minha hospedeira conheciam a hora e iam assistir atentamente. A poucos passos deste monumento havia uma feira; os órgãos dos carrocéis tocavam desde o fim da tarde até à alvorada.
»

Ernst Jünger, O Coração Aventuroso

[João Silva]

quinta-feira, agosto 04, 2005

Escrever no Verão

Escrever no Verão tem, sem dúvida alguma, várias desvantagens que, por serem tão óbvias,não necessitam de ser enumeradas. Por outro lado, escrever no Verão tem algumas vantagens, entre as quais se destaca o facto de, no Verão, haver uma liberdade total para a «escrita partilhada», visto que é, principalmente, nessa estação que ninguém lê. Ou seja,é no Verão que o indivíduo vulgar atinge alguma liberdade para dar asas às maiores alarvidades.
Para além das vantagens e das desvantagens de escrever no Verão, existem ainda alguns empecilhos à escrita que devem ser enumerados. Desde já, um dos maiores obstáculos à escrita na estação do calor é o próprio calor. Com efeito, o calor, sendo um dos grandes inimigos do pensamento, impede a escrita. Ao calor juntam-se outros dois factores que, devido ao calor que faz neste preciso momento em que escrevo, me levam a crer que estão relacionados com o advento do próprio calor. Assim, os outros dois factores são: o «factor pernas musculadas e brozeadas que dão vontade de abraçar quando se movimentam» e o «factor vazio». São, então, estes dois factores que, sempre relacionados com o calor, fazem com que um cidadão inocente não consiga escrever algo minimamente decente. Dentro destes três factores, sempre em correlação uns com os outros, sobressai, pela sua complexidade semântica, o «factor vazio».

O «factor vazio», como o próprio lexema «vazio» indica, engloba todas aquelas horas de calor em que o cérebro comum se restringe às faculdades de fazer o corpo funcionar (mal, diga-se), engloba todas aquelas horas em que o opaco olhar humano fica a observar o infinito, numa inércia quase assustadora e engloba, ainda, as palavras «expira» e «inspira». Estas duas palavras, se não fossem referidas, limitariam toda e qualquer compreensão do «factor vazio». Estas duas palavras, embora nada pareçam adiantar a toda esta divagação, têm uma importância enormíssima, já que é nos momentos de calor e de maior quietude (não concebo qualquer tipo de movimento debaixo do espectro do calor) que estas duas palavras mais fazem sentido para a pobre mente humana. Aliás, nos momentos de calor e de maior quietude, só estas palavras fazem sentido. Ora vejamos: passa uma perna bronzeada pela rua, o indivíduo pensa «inspira, expira»; passa um incêndio na televisão e o indivíduo, assustado, pensa com medo que lhe falte o ar «inspira e expira»; passa um livro pelas mãos do indivíduo e o indivíduo, que pensa em tudo menos em ler (atenção que não me refiro à minha própria pessoa, porque eu, à semelhança de todos esses milhares de amantes de Dan Brown e de outros afins, gosto muito de ler), sente o coração a bater no cérebro, como se repetisse, incessantemente, as seguintes frases: «A tua função hoje não é ler, é respirar. Vá!, canta comigo: inspira e expira». Portanto, é de concluir que, para além das vantagens e das desvantagens da escrita no Verão, o que importa é ser-se louco e, como diria um conhecido, «I'm the t-shirt».

[Paulo Ferreira]

What the Thunder said

«After the torchlight red on sweaty faces
After the frosty silence in the gardens
After the agony in stony places
The shouting and the crying
Prison and palace and reverberation
Of thunder of spring over distant mountains
He who was living is now dead
We who were living are now dying
With a little patience
(...)»


T. S. Eliot, The Waste Land

[João Silva]

Personagens inigualáveis #5: Tommy



[João Silva]

quarta-feira, agosto 03, 2005

Triunfo

«Se fosse capaz de concebê-lo como vítima, não seria difícil engraçar com ele. Mas há qualquer coisa num homem recém-vindo, de testículos vazios, que me irrita. Um ar superior, de quem já está despachado, uma inexplicável alegria, sempre mais acentuada nas criaturas miseráveis por força do hábito, para quem uma fodinha constitui um triunfo do indivíduo solitário sobre a sociedade inteira.»

Miguel Esteves Cardoso, Cemitério de Raparigas

[João Silva]

Sobre lojas e afins

Acerca de um ex-Presidente que se vai recandidatar, a frase mais acertada (exagerada, mas justa) é aquela que alguém disse há poucos dias: «subiu até às nuvens e era lá que deveria ficar».

[João Silva]

Self-comprehension


René Magritte, Reprodução Proibida (Retrato de Edward James)

[João Silva]

Dilúvio

Agarrado a um pedaço de madeira, um homem discursa para uma multidão. Agarrada a um pedaço de madeira, uma multidão ouve um homem discursar. Entre a multidão e o homem que discursa está um cão, que procura a melhor perna para urinar. Entre a multidão e o homem que discursa está uma perna manchada de urina. Agarrado por uma multidão e por um homem que discursa, está um pedaço de madeira, que, se for visto em larga escala, tem o nome de barco. Entre um homem que discursa e uma multidão está um cão e a sua urina. O homem que discursa não é diferente da multidão, apenas tem capacidades físicas propícias à fala. A multidão, sendo constituída por animais de diferentes espécies, é apenas e só uma multidão. Assim, entre a multidão e o homem que discursa está um cão, que se diferencia do homem e dos restantes animais pela sua falta de vergonha.

[Paulo Ferreira]

terça-feira, agosto 02, 2005

Sobre Joseph Walser

Qualquer abalo nos fundamentos da civilização desencadeia bruscas erupções de sensualidade.

Ernst Jünger, A Guerra como Experiência Interior

[Paulo Ferreira]

O desaparecimento do papel

Quando um jornal acaba, como o Comércio do Porto, é costume falar-se em revolta, em conspiração, em armas e em sangue. É costume ainda repetir-se uma frase que, sendo tão ingénua, chega a levar muita gente às lágrimas. Essa frase é, mais ou menos, do género «eles cortaram-nos o dinheiro mas não nos silenciaram». Ora, esta frase que, dita por mim, não emociona ninguém, é portadora de quase toda a essência humana. Com efeito, afirmar que «eles cortaram-nos o dinheiro mas não nos silenciaram», é a mesma coisa que afirmar que «sabemos que vamos morrer mas andamos à procura do elixir da vida eterna». Ou seja, é através de frases como aquela que é possível chegar-se à conclusão de que, por mais livros que se escrevam, o Homem deve mais à irracionalidade do que a coisas tão simples e, ao mesmo tempo, tão complexas como o pensamento (não falo em racionalidade porque o Iluminismo ainda me deixa muitas noites sem dormir).

A extinção do célebre jornal portuense pode chocar algumas pessoas mais sensíveis à tradição. Aliás, é de saudar o facto de ainda existirem pessoas sensíveis à tradição. Porém, quando alguma coisa desaparece, como é o caso de um jornal com muitos decénios de tradição, a única coisa a fazer é chorar com saudade. Não vale a pena procurar conspirações ou revoltas armadas, nem sequer vale a pena dar continuidade a uma coisa desaparecida através de um blogue, por exemplo. Afinal, o que motiva os leitores de jornais a sentirem comiseração para com um jornal com muitos anos de tradição é o papel. Não é a qualidade das notícias nem a simpatia dos jornalistas do referido jornal que fazem a tradição. Pelo contrário, a tradição é conseguida através de muitos anos de impressão de tinta em papel; é conseguida através dos quiosques madrugadores, que se atrevem a inundar o céu com a brisa dos jornais chegados de fresco. É por isso que a frase «eles cortaram-nos o dinheiro mas não nos silenciaram» não faz qualquer sentido face à extinção de um jornal. Quando os jornais deixam de aparecer nas bancas e, por conseguinte, as pessoas deixam de sentir o seu cheiro e a sua tinta nos dedos, não há nada a fazer, a não ser arranjar dinheiro para recolocar o jornal em funções.

[Paulo Ferreira]

segunda-feira, agosto 01, 2005

Memória de Zuckerman

Hoje passei pela loja em que, na infância, roubava os meus brinquedos preferidos. Apeteceu-me roubar um simples brinquedo, apenas para relembrar os tempos de criança. No entanto, ao entrar na loja, apercebi-me de que já não sabia quais eram os meus brinquedos preferidos. Além disso, a realidade é que já não sou uma criança. Mesmo assim, quando a dona da loja me virou as costas, peguei num brinquedo e enfiei-o no bolso do casaco. Dir-se-ia que, ao roubar aquele homem-guerreiro de borracha, reinventei o meu mundo e as minhas coordenadas.

[Paulo Ferreira]

Uma questão de posse

G. era tão possessivo que, de modo a que nenhum dos seus amigos soubesse quem era o seu escritor preferido, tratava-o por «gajo».

[Paulo Ferreira]